Friday, April 1, 2011

Eu, recenseador

"Um ladrão, a esta hora?" Às quatro da tarde de um sábado, este foi o primeiro pensamento que lhe assaltou o espírito. E eu, do outro lado, adivinhei-lhe o receio. Segundos depois, vi um olho assustado a espreitar através da porta. Como o óculo era grande, deu para ver a íris a dilatar-se, a estranheza no olhar e a desorientação de quem não esperava que a campainha tocasse àquela hora. Da minha parte, era a altura ideal para agir. Não podia perder a oportunidade. "Ricardo Duarte do Instituto Nacional de Estatística (INE)", apresentei-me. "Venho entregar a documentação do Censos 2011". Passado o susto, a porta não demorou a abrir. A missão estava cumprida.

A surpresa da senhora que depois me recebeu com simpatia é fácil de explicar. Não é todos os dias que alguém vestido com um colete florescente e com uma pasta cheia de papéis aparece a bater à porta. Não faltam histórias de assaltantes que usaram este e outros expedientes, mas como recenseador dos Censos 2011 essa era a minha tarefa. Na primeira fase da maior operação estatística do país, que teve a duração de duas semanas e terminou no passado domingo, 20, tive de distribuir nos prédios que me foram atribuídos um formulário sobre a habitação, outro sobre a família e outro ainda sobre cada indivíduo. A eficácia não só era uma arma, mas também a garantia de que conseguiria dar conta do recado.

No total, fiquei com 57 edifícios e 290 alojamentos. Muitas campainhas, muitas portas, muitas escadas, poucos elevadores. Muitas pessoas, diferentes hábitos de vida e horários, já para não falar nos imprevistos: viagens, férias, mudanças, paradeiros desconhecidos. Com um objetivo diário de 20 casas, qualquer adiamento significava mais trabalho para o dia seguinte. Não podia facilitar.

Foram duas semanas intensas, sem descanso. E só agora percebo como é difícil a vida de quem tem como profissão bater a portas alheias. Carteiros, funcionários das companhias da água e da luz, testemunhas de Jeová, cobradores de fraque, agentes do Círculo de Leitores, vendedores de enciclopédias, aspiradores, tupperwares e robots de cozinha. À semelhança destes últimos, também tive de aperfeiçoar a minha técnica. Não comi o pedaço de pão tirado do filtro do aspirador, como há anos um demonstrador fez em minha casa, depois de ter aspirado a sala, mas não deixei de puxar lustro ao discurso. Sobretudo para assegurar que abriam a porta do edifício, o que se revelou a tarefa mais difícil. Quem não espera ninguém, nem se dá ao incómodo de tentar perceber quem é. O caso mudava de figura quando se ouvia uma espécie de ladainha a subir de andar em andar. Era eu, pois claro, a repetir as mesmas informações, porta a porta, pessoa a pessoa.

Manter-me distante foi a primeira regra de ouro que adotei. A experiência mostrou-me que quanto mais perto da porta, maior a desconfiança. E o tempo e a explicação dos meus propósitos encarregaram-se de aproximar recenseador e recenseado. A segunda máxima: recorrer ao bom senso, seguindo as indicações do INE. Como se fosse a função mais entusiasmante do mundo - e muitas vezes senti-a assim - apresentei os objetivos gerais do Censos 2011. Uma gigantesca operação nacional através da qual saberemos quantos somos, como vivemos, que formação temos e o que fazemos. A imagem da "fotografia do país", que usei na maior parte dos casos, funcionou sempre. Por ser visual e verdadeira. Com os dados que vamos começar a recolher na próxima semana (os prazos de entrega são 10 de abril para a internet e 24 do mesmo mês para o papel) o negativo entra na fase de revelação. Com todos os habitantes incluídos, Portugal poderá ver-se ao espelho. E perceber com que tons se pinta a sua imagem.

Foi um impulso que me levou a inscrever nos Censos 2011, uma daquelas decisões de ano novo. Não sou supersticioso, mas as passas que se comem à meia-noite de 1 de janeiro têm um significado especial. A ideia de recomeço atrai-me e este ano destinei um desejo à cidadania. Tempos excecionais requerem medidas excecionais e num mundo mergulhado numa crise com contornos difusos ninguém pode ficar indiferente. Não escondo que a renumeração também pesou (o INE estima que cada pessoa, cumprindo os prazos, pode ganhar cerca de 750 euros). Mais importante, contudo, foi a memória que guardo das aulas de História Moderna de Portugal da Faculdade de Letras de Lisboa, lecionadas pelo dedicado e rigoroso prof. Carlos Margaça Veiga. Aí estudei o "numeramento de 1527", promovido por D. João III, que apesar de não poder ser considerado o primeiro Censos de Portugal (que data de 1864) tem características muito semelhantes. Com a empreitada dos Descobrimentos, milhares de portugueses saíram do país em busca de novos mundos. "Ao cheiro desta canela/ o reino se despovoa", dizia Sá de Miranda, pelo que o rei quis saber quantos por aqui viviam. Escondido e subjacente estava uma estratégia de fortalecimento da monarquia, na linha das inquirições de D. Afonso III, que culminou no absolutismo moderno da IV dinastia. Mas o que antigamente era um mecanismo de centralização, é hoje um instrumento ao serviço dos cidadãos.

Arroios, Alvalade e São Mamede: eis as três freguesias de Lisboa a que me candidatei (onde vivo ou já vivi), num processo simples. Em janeiro, preenchi um formulário na internet. Em fevereiro, fui chamado para uma entrevista de seleção, que teve em conta a minha motivação, disponibilidade e conhecimentos informáticos. Por último, frequentei uma ação de formação de um dia inteiro, para me familiarizar com os critérios adotados e os formulários.

Só não me prepararam para a tarefa que tive pela frente. Porque andar a bater de porta em porta não é apenas uma operação estatística. É, acima de tudo, uma experiência humana. Preenchi muitos impressos e escrevi centenas de vezes os mesmos códigos. Nada, porém, suplanta as marcas do contacto direto com as pessoas, que se mostraram disponíveis e interessadas. Numa sociedade que parece desvalorizar os laços de vizinhança, esta foi uma forma de me aproximar de quem me está mais próximo, ouvindo histórias de vida ou vendo uma escultura sobre a libertação da mulher, que uma artista plástica fez questão de me mostrar. E nunca hesitei: sempre que foi possível troquei dois dedos de conversa por um sorriso.

Versão integral do texto (que já segue a novo norma do Acordo Ortográfico) publicado na revista Visão, a 24 de Março de 2011.

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