Nisso estamos de acordo: “Uma livraria é o último lugar onde se espera encontrar um cadáver”. Mas também não se pode dizer que a Papyrus, o palco de tão inesperadas mortes, tenha clientes normais. São antes “pacientes” ou “excêntricos”, dependendo da perspectiva da livreira de serviço, que fazem daquele espaço rodeado de livros a sua segunda casa. Uns dormem enquanto fingem que lêem, outros arrumam sorrateiramente as prateleiras, ordenando títulos em busca de um significado oculto, outros ainda compram sempre a mesma obra, reunindo num ano mais de 150 exemplares repetidos. Alguns aparecerão mortos. A Papyrus, afinal, é um lugar estranho. A livraria ideal para um detective apaixonado por literatura.
Nascido em Belgrado, em 1948, Zoran Živković pertence àquela categoria de escritores bibliófilos que fazem do livro o tema das histórias que escrevem, adoptando a célebre máxima de Jorge Luis Borges: “Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca”. E o escritor argentino não é aqui chamado por acaso. Como o autor de Ficções, Živković demonstra o mesmo gosto pela efabulação, pelos cenários especulativos e pelas muitas portas que cada história abre. Não teme, por isso, confundir realidade e fantasia, verdade e mentira, memória e ficção, o que se escreve e o que se lê. A prová-lo está O Último Livro, o seu segundo romance publicado em Portugal, depois de “A Biblioteca”, ambos da Cavalo de Ferro. “Quando se escreve em prosa, existe a realidade do escritor e a realidade do livro. Elas estão estritamente separadas”, diz uma das personagens deste romance (pág. 234). Mas o escritor não a ouve. Mistura tudo.
Com as suas muitas leituras, o inspector Dejan Lukić rapidamente perceberá que a livraria Papyrus não é um caso de polícia, mas um caso literário. Talvez esteja mesmo perante a ideia mítica, perseguida por muitos escritores, do livro que, uma vez lido, provocará a morte do seu leitor. É o tema que encontramos em O Nome da Rosa, abundantemente citado em O Último Livro, de Umberto Eco, ou em A Assassina Ilustrada, de Enrique Vila-Matas, entre muitos outros exemplos e variações. De resto, é esse misterioso poder da literatura que nos agarra no início, com os ingredientes de um bom policial. Pelo caminho, no entanto, o enredo perde-se, divagando por outros assuntos e sonhos que nos desviam do cenário inicial: uma livraria com propensão para a desgraça. Uma metáfora, no entanto, fica na memória. É que, bem vistas as coisas, os livros não matam. São, pelo contrário, fonte de vida. Real ou imaginária. E nisso também estamos de acordo.
Versão alargada de um texto publicado no Jornal i, a 19 de Maio.
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