


Descrições sumárias ou entrar no detalhe? Quando se fala de Livros com História dentro, tema da terceira mesa do LeV, é esta dúvida que André Gago coloca. E que esteve presente no seu último romance, Rio Homem. Ao abordar a Guerra Civil Espanhola, o actor e escritor confrontou-se com as muitas nuances que a História tem. “É preciso ir além da visão-pronta-a-digerir que às vezes nos apresentam”, defendeu, “e sobretudo não dar de barato que as pessoas sabem o que se passou”. A sua opção, assim, foi ser o mais concreto e minucioso, envolvendo as peripécias de Rolegio com os dados, factos e acontecimentos que caracterizam o conflito espanhol. Porque, na sua opinião, “esquecer é muito mais simples do que recordar”.
Autor de vários romances históricos, Pedro Almeida Vieira também defedeu a História – e o Passado – como um meio para entender o presente. Até porque não vê facilidades naquele género literário. “Um autor que escreve sobre o passado não tem rede, tem obstáculos. Não é uma corrida de 100 metros, são 110 metros com barreiras”. É certo que a investigação ajuda, mas o mais importante para o autor de A corja maldita é “ter um pé no presente”. Os seus livros são, por isso, histórias com passado presente. Viagens espaciais e temporais à natureza humana onde o leitor pode encontrar-se e, através do passado, perspectivar o futuro.
Prova desta perspectiva é o romance de Teolinda Gersão. Em As cidades de Ulisses, a escritora recordou mal do passado, mostrando como são presentes. A corrupção, que vem do tempo de D. Manuel, que chamou a si os negócios dos mercadores do reino, ou dos anos 80, retratados no romance. Um discurso político com um objectivo: “Promover, através da literatura, uma mudança de mentalidades”.
Neste emaranhado de questões, o cubano Leonardo Padura propôs uma organização conceptual. Há livros de História, que a tomam como matéria fundamental; livros que contam histórias reais, muitas vezes em forma de romance; livros usam a história como parte do argumento, como os romances históricos; e os livros que contam histórias intencionalmente esquecidas. É o caso do seu último romance, O homem que gostava de cães, sobre o assassinato de Trosky. Perante a dificuldade de se ter acesso a todos os documentos que interessariam para reconstituir o plano que Estaline montou para apagar do mapa o seu inimigo número 1 – com uma noção muito lúcida da História, ele mandou destruir documentos à medida que os ia produzindo -, Padura lembrou o dilema do escritor: “Os livros de História partem de um pressuposto: é possível saber o que aconteceu. Mas essa ideia nem sempre se cumpre”. E rematou: “No jogo da história, não usamos todas as cartas do baralho. Só as que temos na mão”.
"Proponho-vos o seguinte exercício", atira Rui Zink, a meio da sua intervenção na primeira mesa do Literatura em Viagem (LeV), dedicada ao tema Viajo para disciplinar o raciocínio. "Uma noite, antes de se deitarem, tentem imaginar o dia de amanhã". Parecia uma proposta simples, mas não era. Tinha truque. Uma revelação escondida. Porque, na verdade, o que o autor de Hotel Lusitânia pedia não era uma projecção feita a olhar para a agenda. Antes um “imaginar o que normalmente não se imagina”. O exercício inverso deveria ser repetido numa manhã, não necessariamente a seguinte. “Tentem recordar o dia de ontem”.
Com este duplo jogo, afiança Rui Zink, rapidamente se perceberá que tanto num caso como noutro o que está em causa é sempre a imaginação. “Porque o que num dia pensamos ser memória (ontem) é afinal reconstrução e o que noutro acreditamos ser imaginação (amanhã) é apenas conhecimento”. É por isso que o escritor defende que “a melhor viagem é a interior, aquela que fazemos dentro de nós”. Se depois empreendemos andanças físicas, é porque “para regressar precisamos de partir”. E em qualquer desta viagens o mais importante são as pessoas, o olhar, este pêndulo entre a memória e a projecção.
A noção de viagem mais acção, apresentada por Rui Zink e retirada da mesma palavra (Vi – Ajo), marcou as intervenções da primeira mesa. José Ricardo Nunes lembrou a viagem mais aterradora que conhece, aquela que o semi-heterónimo de Fernando Pessoa, Bernardo Soares, faz no eléctrico. Também aqui, no embate com o exterior, tudo é essencialmente interior. Os mundos percorridos pelos carris são ao mesmo tempo físicos e insondáveis. João Lopes Marques revelou a sua preferência por não-lugares e territórios de estranheza quando a escrita chama por si. “Não consigo escrever em casa”, disse. E, por isso, faz da viagem um modo de vida, tendo fixado residência na Letónia. O seu novo romance, Iberiana, é o resultado dessa inquietação, ligando duas pontas da Europa: País Basco e Geórgia.
Para o brasileiro Marcelo Ferroni, a acção faz-se no escritório, embora seja igualmente agitada. É daqueles que se define como um “viajante sedentário”. Quando era adolescente, sonhava dar a volta ao mundo. Passou muitos anos a juntar dinheiro para a realizar. Mas quando finalmente olhou com entusiasmo para a conta bancária, decidiu: o melhor é ir para Paris e ficar lá seis meses. A viagem fez à volta do quarto. O que também aconteceu com a biografia imaginária que fez de Che Guevera. Para escrever Método Prático de Guerrilha, pensou em muitas viagens e em muitos destinos. “Como bom sendentário”, brincou o escritor e editor da Objectiva, “à medida que me desliguei dos livros que serviram de base à minha investigação, abandonei também a ideia da viagem”. No fim, acabou por encontrar e descrever uma Bolívia feita citações. E garantiu: “Este é um livro de viagens a um país imaginário”.
Opção contrária tem Miguel Carvalho, que luta por manter o que de melhor há no jornalismo: “Reproduzir os cheiros e as sensações do terreno”. Contra o “noticiário fast-food”, o grande-repórter da Visão propõe a filosofia que alimentou gerações de jornalistas: “O jornalismo pode não mudar o mundo, mas devemos continuar a escrevê-lo como se isso fosse possível”.
O aviso só chega no fim: “A única personagem inventada é o protagonista, Simone Simonini. Todos os outros existiram realmente”, escreve o autor numa nota a que deu o sugestivo título “Inúteis explicações eruditas”. E acrescenta: “Mas, repensando bem, até Simonini, se bem que feito de uma colagem, pelo que lhe foram atribuídas coisas feitas por pessoas diversas, de algum modo existiu. Aliás, a bem dizer, ele está ainda entre nós”. Não podia haver texto mais esclarecedor quanto aos propósitos de Umberto Eco e deste seu novo livro, O Cemitério de Praga. Como em O Nome da Rosa, estamos perante o romance histórico perfeito, na medida em que se apropria de uma época e nela encontra a narrativa que pode ser contada. Não há mistérios deste tempo transportados para outro, nem conceitos actuais em contextos passados. É com a verdade que o escritor italiano nos engana. E alerta.
O mínimo que se pode dizer é que Eco se lançou numa grande empreitada. Ao longo do romance, cruzamo-nos com inúmeras figuras históricas, que defenderam ideias, muitas vezes em livros, e praticaram diversos actos. Simonini vive, dialoga, interage e negoceia com elas, levando-as a fazer e a dizer o que fizeram e disseram realmente. Um trabalho de precisão que se assemelha ao do jogador de xadrez que tem de avaliar as muitas jogadas possíveis antes de escolher a sua. Eco domina com mestria todo o arco temporal deste romance: o séc. XIX, que tanta influência teve para os intelectuais europeus. E move-se com a mesma naturalidade com que fala de arte, de semiótica ou de literatura. Sabe, por isso, que nessa altura as ideologias não se confundiam e que escritores, críticos, ensaístas, teóricos e políticos intervinham activamente no espaço público, numa enorme efervescência cultural.
É esse tabuleiro que Simonini tem pela frente, um homem tornado célebre por conhecer como poucos a arte de falsificar documentos. Numa Europa onde sopram os espectros do comunismo e as vagas nacionalistas, ele só tem duas ambições: juntar dinheiro suficiente para viver dos rendimentos e frequentar os melhores restaurantes. E um ódio de estimação: os judeus. Inspirado pelo avô, ele será o arquitecto da conspiração que esteve na origem do anti-semitismo que percorreu a Europa no final do séc. XIX e que depois resultou na solução final de Hitler. Na sua cave amontoam-se cadáveres, tal como no seu diário sucedem-se episódios de vida que o narrador tenta ordenar. O mais assustador é que nada é mentira. Qualquer semelhança com a realidade não é ficção. São as qualidades de um grande romance histórico.
Texto publicado no Jornal i, a 2 de Abril