
O aviso só chega no fim: “A única personagem inventada é o protagonista, Simone Simonini. Todos os outros existiram realmente”, escreve o autor numa nota a que deu o sugestivo título “Inúteis explicações eruditas”. E acrescenta: “Mas, repensando bem, até Simonini, se bem que feito de uma colagem, pelo que lhe foram atribuídas coisas feitas por pessoas diversas, de algum modo existiu. Aliás, a bem dizer, ele está ainda entre nós”. Não podia haver texto mais esclarecedor quanto aos propósitos de Umberto Eco e deste seu novo livro, O Cemitério de Praga. Como em O Nome da Rosa, estamos perante o romance histórico perfeito, na medida em que se apropria de uma época e nela encontra a narrativa que pode ser contada. Não há mistérios deste tempo transportados para outro, nem conceitos actuais em contextos passados. É com a verdade que o escritor italiano nos engana. E alerta.
O mínimo que se pode dizer é que Eco se lançou numa grande empreitada. Ao longo do romance, cruzamo-nos com inúmeras figuras históricas, que defenderam ideias, muitas vezes em livros, e praticaram diversos actos. Simonini vive, dialoga, interage e negoceia com elas, levando-as a fazer e a dizer o que fizeram e disseram realmente. Um trabalho de precisão que se assemelha ao do jogador de xadrez que tem de avaliar as muitas jogadas possíveis antes de escolher a sua. Eco domina com mestria todo o arco temporal deste romance: o séc. XIX, que tanta influência teve para os intelectuais europeus. E move-se com a mesma naturalidade com que fala de arte, de semiótica ou de literatura. Sabe, por isso, que nessa altura as ideologias não se confundiam e que escritores, críticos, ensaístas, teóricos e políticos intervinham activamente no espaço público, numa enorme efervescência cultural.
É esse tabuleiro que Simonini tem pela frente, um homem tornado célebre por conhecer como poucos a arte de falsificar documentos. Numa Europa onde sopram os espectros do comunismo e as vagas nacionalistas, ele só tem duas ambições: juntar dinheiro suficiente para viver dos rendimentos e frequentar os melhores restaurantes. E um ódio de estimação: os judeus. Inspirado pelo avô, ele será o arquitecto da conspiração que esteve na origem do anti-semitismo que percorreu a Europa no final do séc. XIX e que depois resultou na solução final de Hitler. Na sua cave amontoam-se cadáveres, tal como no seu diário sucedem-se episódios de vida que o narrador tenta ordenar. O mais assustador é que nada é mentira. Qualquer semelhança com a realidade não é ficção. São as qualidades de um grande romance histórico.
Texto publicado no Jornal i, a 2 de Abril
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