Monday, March 28, 2011

Na cabeça de Bolaño

Roberto Bolaño não pára de nos surpreender. Da sua arca continuam a sair livros, completos ou inacabados, que reforçam a ideia de um autor insaciável, inventivo, labiríntico, genial, que produziu a um ritmo alucinante nos últimos oito anos de vida, a partir do momento em que teve consciência da proximidade da morte. E cada novo texto afigura-se parte de um mesmo todo, como se a obra do escritor chileno fosse um enorme puzzle que o leitor tem de construir e decifrar. Os Dissabores do Verdadeiro Polícia, que agora se publica em Portugal, juntamente com um pequeno volume de entrevistas, é um exemplo dessa concepção literária. Trata-se de um romance inacabado, no qual trabalhou durante mais de 20 anos, desde os anos 80 até 2003, data da sua morte. Os cinco capítulos, dois encontrados no computador, três no arquivo em papel, remetem para diferentes fases de desenvolvimento. Nada disto, porém, diminuía a obra aos olhos do seu criador que, em 1995, numa carta dirigida a uma amiga mexicana, o apresenta como “o meu romance”, para depois acrescentar: “Oitocentas mil páginas, um enredo demencial que não há quem entenda”.

Quando se é autor de 2666 e Os Detectives Selvagens, dois dos maiores romances das últimas décadas, não é fácil colocar Os Dissabores do Verdadeiro Polícia no topo da pirâmide. Mas a afirmação do escritor chileno talvez aponte noutro sentido. Aqui encontramos personagens, situações e cenários que foram aprofundados ou reescritos noutras obras, como aconteceu com o seu primeiro livro A Literatura Nazi nas Américas, que inclui o embrião de Estrela Distante. O protagonista, “o homem de 50 anos” a que Bolãno se refere na mesma carta, é Amalfitano, que conhecemos de 2666. Acompanhamos parte da sua trajectória de vida, de Barcelona a Santa Teresa, com recordações do Brasil, Chile, Argentina. Também reencontramos Arcimboldi, o misterioso escritor do pós-guerra alemão, que Amalfitano traduziu e que tantos críticos procuram conhecer. Deles temos notícias nem sempre coincidentes com as de 2666 (nos nomes, nos livros, nas biografias), numa espécie de reflexo distorcido das ideias que fermentavam na cabeça de Bolaño.

Os Dissabores do Verdadeiro Polícia é, assim, um diário de bordo da sua grande produção romanesca, habitado pelos mesmos fantasmas e obsessões: a literatura, real e imaginária, a violência (as mulheres assassinadas de Juárez), a loucura e os limites da condição humana. Como Bolaño bem nos lembra, pela voz de Amalfitano, “um livro [é] um labirinto e um deserto”. Um jogo no qual o leitor (o verdadeiro polícia do título) tem de definir as regras. E encontrar o seu caminho.


Texto publicado no Jornal i, a 12 de Março de 2011.

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