Friday, March 23, 2012

A experiência sublimada de Alexandra Lucas Coelho


Experiência e memória são as palavras que mais lerá nesta entrevista. E não por descuido na passagem da conversa para o texto. É que, para Alexandra Lucas Coelho, 44 anos, essas são as ferramentas centrais da sua escrita. Quer no jornalismo, que pratica há mais de duas décadas, neste momento como correspondente do Público no Brasil, quer na Literatura, onde agora se estreia, com o romance E a Noite Roda, uma edição da Tinta-da-China




No tempo dos faraós, os egípcios acreditavam que citar um nome de um morto era fazê-lo viver eternamente. A noção que Alexandra Lucas Coelho (ALC) tem da escrita não anda muito longe desta sabedoria antiga. Para si, escrever é acionar uma matéria informe e morta que, uma vez resgatada, desperta para uma nova vida. “A única forma de voltar [a uma experiência] é escrever para que exista”, afirma a narradora do seu primeiro romance, E a Noite Roda (248 pp, 16,20 euros), que é lançado hoje, quarta-feira, 7, a partir das 22, no Bar do Teatro A Barraca, numa conversa com Gonçalo M. Tavares. “Quando é que o real se torna real?” questiona-se, na mesma linha, ALC, nesta entrevista. “Quando acontece ou é contado?”.
Este primeiro romance é, assim, uma forma de perceber como se pode captar o mundo que nos rodeia, aqui sem os constrangimentos do jornalismo, a sua profissão e escola de escrita. À sua semelhança, a narradora deste livro, Ana Blau, é jornalista, enviada especial ao Médio Oriente, mulher que se habituou a cruzar fronteiras e a ver a cidade onde nasceu com os olhos da novidade. Um dia apaixona-se por outro correspondente, León, o que a levará a uma incerta aventura amorosa. “Ela sou eu mas depois já não é”, afirma ALC, apresentando as regras desta história. No jogo da literatura, é a liberdade quem mais ordena. Transfigurando a memória, sublimando o real, recosendo as linhas da sua experiência.

Este livro começa com uma evocação de Gilgamesh. Qual o seu significado?
Marcar, desde o início, a passagem de uma fronteira. Gilgamesh é a nossa narrativa primordial, o primeiro de todos nós, como se diz no livro. Ao nomeá-lo, a narradora imita aquelas pessoas que ao entrar num templo ou terreiro evocam o espírito que lhe preside. A narradora convoca o passado para ter consciência do que está para trás e sublinhar que o território que vai pisar é o da literatura, das histórias que se contam. Se virmos os meus livros como um percurso, este prólogo é o momento em que eu assinalo a passagem dessa fronteira.

A que separa o jornalismo da ficção?
Sim, embora considere “ficção” uma palavra vazia, prefiro “romance”. O romance enquanto buraco negro que atrai memórias, experiências e todo o tipo de matérias que depois são usadas como um barro. O jornalismo é uma forma extraordinária de captar a realidade (que é o que na verdade me interessa), mas tem algumas limitações, próprias do exercício da profissão. Neste momento, quero tentar uma escrita que não tenha esses constrangimentos.

Foi esta história que exigiu essa nova escrita ou era uma vontade antiga?
Uma vontade. Mas quando digo que se trata de avançar para outra etapa não significa um corte radical com o que fiz para trás. Daí o aproveitamento de técnicas do jornalismo. Tudo pode confluir para o romance, pois é um espaço inteiramente livre. Em E a Noite Roda eu emprestei à narradora, a Ana Blau, as minhas próprias circunstâncias. Fui correspondente em Jerusalém, fiz muitas das reportagens que ela envia para o seu jornal e a relação que ela tem com certos lugares é também a que eu tenho. Acima de tudo, queria lidar com materiais da minha experiência e memória de uma forma completamente diferente da que fiz como jornalista. E se as pessoas já puderam ver parte dessa aproximação ao real (nos trabalhos para o Público), agora vou tentar mostrar a outra.

Como se usasse duas lentes, uma jornalística e outra literária?
Sim. Mesmo agora no Brasil, sinto que há um tempo para observar e escrever no imediato e outro para observar e escrever mais tarde. É pegar numa matéria-prima que num determinado momento foi tratada a quente e abordá-la agora de uma outra forma. E com uma liberdade inteiramente nova para mim. Fazer com as minhas memórias o que eu quiser, transfigurando o material factual. Nesse sentido, Ana Blau confunde-se comigo e isso é deliberado. Ela sou eu mas depois já não é.

São muitos os exemplos de escritores que escrevem sobre sítios que nunca conheceram. Isso nunca acontecerá consigo?
Não descarto essa possibilidade. Não faria sentido agora que estou a entrar num território de total liberdade. Além disso, eu estive em todos os lugares que são referidos no livro, mas não necessariamente naquelas alturas, estações do ano ou circunstâncias. Entre os dois caminhos que se costuma traçar, um borgiano, da imaginação e da fantasia, e outro proustiano, da experiência e da memória, o meu será sempre o segundo.

O que a interessa nesse campo da memória e da experiência?
Perceber o que é real, quando se torna real, quando acontece ou é contado? Claro que a forma de chegar a essa verdade não passa por contar as coisas como ou no momento em que se realizaram. Se calhar conseguiremos transmitir com mais vivacidade essa realidade retocando-a e transfigurando-a. Nesse sentido, este livro é também um jogo que proponho ao leitor.

Ao usar a lente da ficção, o seu olhar sobre o Médio Oriente mudou?
Só no sentido em que o ponto de vista é o da intimidade, dos bastidores, e não do palco. O próprio movimento do livro vai do plano geral para o grande plano, de dentro para fora, da paisagem para o quarto. Por isso, não é que tenha descoberto um outro olhar sobre o Médio Oriente. Apenas tentei regressar a uma cidade (Jerusalém) central na minha vida e lidar com outras dimensões dessa experiência. E contar uma história.

Uma história de amor?
Não diria amor, antes paixão ou desejo de paixão ou até desejo de aventura, dependendo do ponto de vista. Interessou-me explorar esse tema, que é tanto meu como de muitas outras pessoas, e perceber o seu fracasso, a sua angústia, o seu vazio, a sua irrealidade. Entender também até que ponto essa paixão é gerada e impossibilitada pelo exterior, se é ou não fabricada e afetada pelo contexto.

Esta paixão não seria possível noutro contexto?
Eis a questão. Talvez não. A paisagem, aqui, mais do que um pano de fundo é também uma personagem. Esta história existe porque as circunstâncias da Ana e do Leon são aquelas, naquele lugar, com uma intensidade específica que gera uma aproximação e uma vontade. Quando se retira a paisagem, descobre-se que não há nada debaixo dos pés.

A relação entre Ana e Leon é idealizada mas também muito física...
Esse é outro campo que me interessa particularmente. A relação sexual pode ser um revelador, como na fotografia, das próprias personagens, dos seus avanços e recuos, das suas limitações. É um território muito rico, que lida com o que é mais nosso. É como se, ao entrar na literatura, estivesse a iniciar um caminho para dentro, depois de ter feito um para fora, como jornalista. E todos estes temas são da mesma ordem. Quero descobrir como se pode lidar com a memória e a experiência de uma paisagem, de uma cidade, de um lugar e de duas pessoas numa cama. No livro, cito um poema de John Berger que fala precisamente disto: “Maravilhoso o vento de primavera para os/ marinheiros que anseiam partir/ E mais maravilhoso ainda o lençol que cobre dois/ amantes numa cama”. É isso que procuro: o marinheiro que está à espera que o vento sopre nas suas velas e a intimidade de duas pessoas. É também uma tentativa de tornar a leitura uma experiência sensorial.

Em que sentido?
Dar a ver, como no jornalismo, mas também dar a ouvir e a sentir. E se a ambição é conseguir tocar o real, nada é mais desafiador do que dois corpos no afã de provarem que estão vivos.

Estas personagens podem vir a aparecer num novo romance?
Em relação à Ana, não. Penso que ficou por aqui. O Karim, personagem que apenas é nomeado, vai aparecer no próximo romance. Gosto da ideia de uma ligação entre livros e não descarto a possibilidade de Leon regressar, ele que nunca chega a falar neste romance.

A escrita deste romance foi muito diferente da dos outros livros?
Não teve nada a ver. Foi muito morosa, enquanto a escrita dos anteriores foi rápida e contínua. Mas cada um resultou de um processo diferente, até porque não me interessa repetir fórmulas. Não me vejo, por exemplo, a fazer mais um livro de viagens, embora no Brasil haja vários pretextos. O Caderno Afegão partiu de um diário e foi escrito muito tempo depois de ter regressado. O Viva México foi um livro rápido, colado ao momento e concluído em dois meses. Este romance é uma história contada por uma mulher e apenas conhecemos a sua versão. Para mim não era importante construir uma trama tradicional ou desenvolver as personagens secundárias. O próximo livro, no entanto, será diferente, polifónico, e passado no Brasil. 

Está lá há ano e meio. Como tem sido essa experiência?
O Brasil é neste momento o centro do mundo. Toda a gente está a olhar para aquele país contraditório e complexo. E o símbolo dessa grande transformação é o Rio de Janeiro, uma cidade oposta à minha natureza. Ao contrário de Buenos Aires, por exemplo, mais melancólica, o Rio é voltado para fora. Raramente nos deixa pousar os olhos e a cabeça.

Porquê?
Aos nossos olhos, a cidade está sempre a mudar. A topografia é tão extravagante que sempre que se muda de direção, se entra ou sai de um morro, se observa de sul ou de norte, tudo parece novo e mudado. E o meu Rio não é o das praias ou do Leblon. Moro no meio da floresta, no Cosme Velho, o bairro onde viveu Machado de Assis.

O Brasil novo que está a parecer é sustentável?
É uma das grandes interrogações que se colocam neste momento. Será que o Brasil vai se tornar um país desenvolvido e, ao mesmo tempo, manter as produções de monocultura que estão a destruir a Amazónia? E vai crescer à custa de milhões de pobres ou vai proporcionar-lhes cuidados de saúde e uma educação que nunca tiveram?

Esse é um debate público?
É um debate que às vezes aparece nas margens, poucas vezes no centro. Não sei dizer para onde vai o Brasil, agora que ele surge como contraponto a um mundo em crise. Há uma enorme explosão de emprego e importação de quadros - toda a gente quer ir viver para o Rio. O que o Brasil tem de dizer ao mundo é se consegue encontrar um modelo alternativo com o qual a Europa e os EUA possam aprender qualquer coisa. O que pode resultar do cruzamento de várias heranças raciais e sociais?

De que forma essa experiência vai ser passada para o romance que está a escrever?  
A ambição é tocar neste momento único da história do Brasil e projetá-lo no interior das personagens. Será centrado no Rio, embora absorva experiências de outras regiões brasileiras e não só.

E terá ecos do português que se fala no Brasil?
Lidar com uma língua que é minha mas ao mesmo tempo não é foi um dos motivos que me levou a ir para o Brasil. E não tenho ideias muito definidas sobre isso. Falamos uma língua que está a ser constantemente alargada e moldada por 190 milhões de pessoas que vivem num país gigantesco. É fascinante, mesmo se no futuro der origem a uma outra língua. E interessa expor-me a esse atravessamento. Como não sou uma patrioteira nacionalista não tenho qualquer problema com isso. Não vou perder a minha identidade, nem o meu sotaque.
    
Entrevista publicada no JL 1081, de 7 de Março de 2012

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