É
um livro em tudo original, até na sua edição. Tem uma chancela - a Dafne - mas
esteve em subscrição pública para recolher o dinheiro necessário à sua
publicação. Vida no Campo, de Álvaro Domingues, 52 anos, prof. da
Faculdade de Arquitetura do Porto, é tão híbrido como as paisagens que
descreve. Para evidenciar a fronteira cada vez mais ténue entre o rural e o
urbano, o especialista em Geografia Urbana socorre-se de fotografias suas,
poemas alheios, teses comuns e análises próprias. Um livro feito de retratos de
um país composto de mudança
A
brincar, costuma dizer: “Fui primeiro a Paris do que a Lisboa”. Poderia ser
sobranceria, ou até sinal de um certo cosmopolitismo bacoco. Mas não. É apenas
a sua forma de desmitificar algumas ideias feitas, enraizadas na sociedade nas
últimas décadas, fruto da propaganda do Estado Novo e das idealizações
turísticas do século XXI. Melgaço, onde nasceu, em 1959, “nunca foi, nem é,
esse mundo remoto e desligado da terra como muitas vezes é pi ntado”. Dessa terra no limite norte de Portugal,
lembra, partiu o primeiro autocarro semanal para Paris. E nos seus tempos de
criança era tão frequente falar-se da “próxima vaca que ia parir”, como da
“atualidade da Nova Caledónia”, onde morava um conterrâneo. Ao quotidiano
difícil da vindima e do trabalho da lavoura, sobrepunha-se um manto diáfano de
urbanidade da diáspora, animado pelas notícias da emigração e das
mundividências que se cruzavam.
É
precisamente essa realidade multifacetada, menos linear do que se possa supor,
que Álvaro Domingues tem tentado divulgar em investigações universitárias e,
agora, numa tetralogia que cruza fotografia e ensaio. Sempre com a ruralidade
debaixo de olho. No conjunto, estes livros são “uma metáfora sobre a perda do
Portugal Rural e um antídoto contra o mau viver pelo despovoamento e abandono,
ou, noutro registo, pela profunda metamorfose que vai lavrando pelo país dos
(ex)agricultores com o desaparecimento das suas práticas ancestrais, modos de
vida, território e paisagens”, como o autor nos explica, citando o que escreveu
na introdução do 2° volume da tetralogia, Vida no Campo, pronto para ser
publicado (ver caixa). E acrescenta: “Esta não é uma questão menor. Como a
língua ou a história, a paisagem é um poderoso marcador identitário, uma casa
comum. E não há paisagens para sempre. Elas são o registo de uma sociedade que
muda e, se a mudança é tanta, tão profunda e acelerada, haverá disso sinais,
para além de pouco tempo e muito espaço para compreender ou digerir as marcas e
formas como se vão atropelando mutuamente, ora relíquias, ora destroços”.
Zona
de pasto ao lado de grandes barragens, ovelhas num bebedouro à beira de uma
estrada, vivendas com lojas no pi so
térreo, ruínas postas à venda em grandes empresas de imobiliário, viadutos que
atravessam aldeias, campos de cultivo colados a áreas industriais, uma corda de
roupa estendida entre dois pi lares
de uma estrutura rodoviária, cabos de alta tensão sobre casas e campos ou
alfaias agrícolas atrás de estádios de futebol com projetos arquitetónicos
premiados internacionalmente. Eis algumas das muitas imagens - são cerca de 300
em a Vida do Campo - que Álvaro Domingues captou de norte a sul do país,
de forma a evidenciar “a falsa dicotomia entre o rural e o urbano”. Ou, como
diz: “Continuar a insistir na dualidade urbano/rural é como olhar para a
sociedade e território com conceitos desfocados. A realidade é o que é e os conceitos
são apenas invenções para tornar claro o que é complicado”. Ou, como reforça: “Vida
no Campo é sobre isto tudo: mitologias do último país rural da Europa que
persistem em inscrever-se no imaginário coletivo e, ao mesmo tempo, as imagens
bucólicas e os destroços desse mundo perdido, variando entre calamidades e
incêndios, resorts para todos os gostos com muita relva e espaço
verde, turismo rural, desertificação ou, ao contrário, casas e estradas por
todo o lado”.
Neste
cenário, uma conclusão é óbvia: o trauma da perda de um mundo rural está longe
de ser resolvido ou apaziguado. “É também disso que se trata neste jogo de
espelhos onde não se percebe exatamente o que é que objetivamente se perdeu,
mas muitos creem que foi o próprio paraíso, a versão bucólica e pastoral do
mundo rural mais que perfeito, como Adão e Eva antes da serpente”. Álvaro
Domingues não tem dúvidas. Neste caso, como nos da psicanálise, Freud explicaria
que estamos perante o trauma ou o “mau luto” pela perda da paisagem que deixou
de ser o que supostamente era. O pensamento também atormenta a paisagem.
Foi
um vizinho de Melgaço, colega da faculdade e viajante por terras das Américas,
que comprou para Álvaro Domingues uma primeira máquina fotográfica, selando,
sem o saber, o destino do amigo. Paga em prestações com os “primeiros dinheiros
que ganhou” - começou a dar aulas quando ainda frequentava o 3° ano da
licenciatura em Geografia, na Universidade do Porto - essa Nikon passou a ser
uma companhia diária. Os primeiros disparos surgiram sem intenção específica,
guiados apenas pelas regras do ofício e as lições de Orlando Ribeiro. “Para ler
a paisagem, é preciso ganhar cota”, dizia o geógrafo aos seus alunos. E Álvaro
Domingues não deixou de subir a montes e colinas, elevações e penhascos para,
com o olhar distanciado, perceber não só como o homem modificou a natureza, mas
como esta também o condicionou.
Mais
tarde, porém, a sua rotina fotográfica desviou-se das morfologias e taxionomia
do povoamento e de outras ferramentas de análise geográfica, que no entanto
nunca deixou de estudar, como demonstra o livro Políticas Urbanas II que
editou, com Nuno Portas e João Cabral, na Gulbenkian, em 2011, depois de um
estudo semelhante e com os mesmos parceiros de 2004. E não faltam ensaios e
conferências no seu currículo académico, hoje exercido na Faculdade de
Arquitetura do Porto. O olhar de Álvaro Domingues, porém, virou-se para essa
fronteira cada vez mais ténue entre o rural e o urbano, entre o campo e a
cidade. Aos poucos, os seus arquivos encheram-se de imagens que documentavam
uma profunda “hibridez”, sendo essa, na sua visão, um das principais marcas que
caracteriza Portugal.
De
início, não adoptou nenhum método, nem sentiu a obrigação de percorrer Portugal
de lés-a-lés. Apenas ligou o “radar”, essa atenção pessoal e transmissível que
nos liga ao mundo, e esperou que a realidade inundasse a sua máquina
fotográfica. Em suma: deixou-se surpreender. E as surpresas foram muitas, em
particular aquelas que punham em causa o “discurso oficial” da geografia e
revelavam as “nossas incompreensões”.
Em
A Rua da Estrada, o 1° volume desta teatralogia e ponto de partida para
uma curta-metragem homónima de Graça Castanheira (ainda em rodagem), Álvaro
Domingues mapeou o modo estatisticamente mais comum de urbanização: a estrada.
“Essa coisa mal-amada pela mesma razão de muitas outras coisas cuja identidade
é flutuante, não encontrando estabilidade por aquilo que é, mas sim pelo que
deixou de ser ou ainda não é”, descreve. “Quando as estradas eram estradas, não
havia os problemas que hoje há. Estradas eram estradas, boas ou más, e ligavam
povoações, vilas e cidades. À beira da estrada havia fontes para matar a sede
de animais e pessoas; havia miradouros, valetas e sombras para descanso e
merendas”.
Mas
o que a sua objetiva fixava era muito diferente: “A rua da estrada perdeu quase
toda a poética e a estética da lonjura e da evasão. Já não é o traço do asfalto
que se acomoda à morfologia da paisagem, as subidas gloriosas, os altos com
vistas de perder a respi ração, o
serpentear ao longo de um vale ou um traço que se funde no horizonte de uma
planície”. Pelo contrário, como sublinha, apoiando-se em conceitos que foi
buscar não só à Geografia, mas também ao Urbanismo, à Antropologia e à
Sociologia, “a estrada-rua mistura tudo num conflito permanente, camiões e
peões, carros e autocarros, motorizadas e patins em linha, cruzamentos com
outras estradas. Há quem simplesmente passe e há quem queira sair e entrar,
estacionar ou atravessar a estrada. Rápi da
de mais para quem lá vive, lenta e congestionada para quem lá passa. Um
desassossego que não se resolve com passadeiras, semáforos, multas, rotundas e
outros truques de acalmia de tráfego”.
Neste trajeto, o que mais despertou a sua atenção foram
as edificações que cresciam ao correr da via pública, respondendo às
necessidades humanas, num emaranhado de estilos, atividades agrícolas,
industriais e sociais. Percurso semelhante será feito no 3° volume da
tetralogia, intitulado Volta a Portugal, e que tem como ponto de partida
as míticas caravanas do ciclismo e as paisagens que então se revelavam na
comunicação, radicalmente transformadas nos últimos anos, como as planícies da
Amareleja, em pleno Alentejo, que atualmente acolhem a mais alta tecnologia na
área dos painéis solares. O último tomo abordará, por seu turno, esses “buracos
negros ou túneis do tempo a que chamamos auto-estradas”, como diz a brincar.
Terá como título Entre nós: de auto-estrada.
Não
se pense, contudo, que este trabalho de cartografia tem na sua essência um
olhar exterior, como aqueles estudos sobre a música pi mba
ou as festas populares, mais assentes na paródia do que na compreensão. Ao
contrário de muita opi nião pública,
Álvaro Domingues não adjetiva esta malha urbana e rural de “caótica” ou “feia”,
fruto de uma construção civil desenfreada (que reconhece haver) ou de uma
corrupção tentacular (que diz existir em todas as sociedades). “Não podemos dar
como explicação o que precisa de ser explicado”, afirma. “Estamos perante
realidades complexas e para as compreender precisamos de novos instrumentos.
Somos uma sociedade pós-moderna que nunca chegou a ser moderna, uma economia
pós-industrial sem nunca ter sido industrial. Temos um discurso de país rico
quando na realidade não o somos”.
Talvez seja mais correto afirmar, como
sugere, que “Portugal é o país mais exótico do mundo”, fazendo jus à sua
condição de semi-periferia, segundo a conceção de Boaventura de Sousa Santos.
E, para Álvaro Domingues, há nele beleza suficiente para “não termos problemas
de autoestima”. Basta deixar cair as imagens mitificadas e renovarmos o olhar e
o saber. É com essa intenção que está a trabalhar num novo conceito, o de Paisagens
Transgénicas, que enunciou pela primeira vez na coletânea de ensaios Arquitetura
em Lugares Comuns, também uma edição da Dafne, como A Rua da Estrada
e Vida no Campo. Um termo que criou para “ultrapassar enviesamentos,
bloqueamentos e ilusões de conhecimento em torno dos conceitos vagos de
paisagem - paradoxalmente considerados claros e classificáveis em taxionomias
estáveis -, tentando diminuir o ruído de fundo e a cacofonia existente, para
melhor perceber o que de facto é mais importante no mal-estar social que se
exprime no discurso e nas representações sobre a paisagem tornada assunto e bem
público, e elemento de identidade e distinção face aos processos acelerados da
globalização-massificação e do sentimento de perda de identidade”. O mundo é composto de mudança. A paisagem também.
Texto publicado no JL
1081, de 7 de Março de 2012
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