Thursday, May 12, 2011

No retrovisor da História



Este poderia ser um policial igual a tantos outros. “Um táxi despenhara-se por volta do quilómetro 17 da estrada que conduz ao aeroporto”, lê-se na sequência de abertura. “Os dois passageiros tinham morrido de imediato, enquanto o motorista, gravemente ferido, fora transportado em coma para o hospital”. Os ingredientes estão cá: um acidente sem motivo aparente (“o veículo não deixará o menor vestígio de travagem”) e um dado que não esclarece, só complica. Uma vez recuperado, o motorista diz que o despiste foi causado pelo que viu através do retrovisor. E o que viu? Um beijo...


Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Philip Marlowe ou Pepe Carvalho, qual destes detectives não seria capaz de resolver tão rebuscado mistério? A abordagem de Ismail Kadaré, no entanto, é outra. Para o escritor albanês, o acidente é apenas um pretexto para falar de conflitos, relações de poder, reconstrução do passado e do papel que a ficção desempenha nesse processo. É que o investigador encarregue de solucionar o “Caso do quilómetro 17” acaba por desistir da via factual. Ouvidas as testemunhas, reunidos os documentos e reconstituída a viagem, toma uma decisão: “Numa noite de fim de Verão, ele pôs-se verdadeiramente a imaginar”, diz o narrador. E, na segunda parte de “O Acidente”, lemos a história que o investigador criou a partir das muitas peças deste puzzle. Só assim, pensa, será possível explicar o que levou uma jovem e bela estagiária do Instituto Arqueológico de Vienna a aproximar-se de um velho e críptico analista do Conselho da Europa. Percebendo a relação que erguem e destroem, em paixões e rancores alternados, o investigador entenderá igualmente a história recente dos Balcãs Ocidentais.


As feridas deixadas pela fragmentação da ex-Juguslávia e pelos regimes totalitários que aí impuseram a sua lei, e contra aos quais Kandaré se opôs, são fendas tão profundas como as que, aos poucos, vão separando este casal. No tribunal de Haia, a que Bessfort terá de comparecer, como na defesa do amor, a que Rovena se entrega, ou ainda como na curva da estrada que o taxista não vê, a descoberta da verdade afigura-se sempre uma tarefa impossível. Porque, conclui o investigador, “há diversas verdades, para além daquela que julgamos ver. Não as conhecemos. Não podemos. Talvez sejam invisíveis”. Visto através do retrovisor, o passado é um enigma que só a literatura pode desvendar.


Texto publicado no Jornal i, a 9 de Abril de 2011.

No comments:

Post a Comment