Monday, April 4, 2011

Mia Couto: Tradutor de Memórias


Versos que “costuram” o passado e que recriam um tempo circular. É desta matéria que se ergue o novo volume de poemas de Mia Couto, Tradutor de Chuvas, uma edição da Caminho que esta semana chega às livrarias e da qual antecipamos três poemas. Formando um fio narrativo, este livro estabelce um íntimo diálogo com o romance que o autor de O Último Voo do Flamingo e Jesusalém, entre muitos outros, começou a escrever há ano e meio. É que sempre que o escritor moçambicano se lança na prosa, a poesia impõe-se como uma inevitabilidade. Como se, para construir uma frase, tivesse primeiro de moldar o verso.

Este livro marca o seu regresso à poesia?
Na verdade, nunca saí da poesia. Mesmo quando estou a escrever prosa, é mais um trabalho poético do que um exercício narrativo. Além disso, sempre que inicio um romance bloqueio na poesia.

Bloqueia na poesia?
Quando começo a escrever a poesia surge-me como um estorvo. Percebo, então, que tenho de passar ali primeiro para resolver e apurar as ideias poéticas em forma de verso que vou tendo. Como se essa inspiração limpasse a minha cabeça e me ajudasse a perceber melhor o que quero fazer na prosa. É qualquer coisa que precede, um espaço de presságio, um pedido de licença, um bater à porta da palavra poética para ter acesso à prosa.

De que trata o romance que está a escrever?
É inspirado num acontecimento real, muito forte, o que por si só me atrapalha, porque normalmente os meus pontos de partida são ficcionados. No Norte de Moçambique, um grupo de leões matou 25 mulheres e um homem. Eu vivi esse período muito intensamente, porque estava a realizar trabalho de campo na zona como biólogo. Assisti aos caçadores a chegarem para matar os leões e ao confronto das pessoas com a realidade e com o que está para além dela (as construções míticas). Mas quero fugir dessa realidade muito apelativa, quase ficcional. Não quero contar uma história convencional, mas manter uma aproximação misteriosa, pelas vias da interioridade.

A unidade deste livro decorre então desse romance?
Sim. São poemas sobre alguém que tem de revisitar o seu passado mas que também tem de perceber que só poderá fazê-lo se o inventar ou construir. O olhar sobre a adolescência e a infância atravessa todo o livro.

Lê-se num verso “só tenho palavras/ para o indizível”. É essa a sua procura?
Quanto tenho de construir um discurso sobre a minha escrita ou explicar se existe uma “intenção” ou, pior ainda, uma “mensagem”, tenho sempre a sensação que estou a mentir. Sou mais verdadeiro quando digo que quero falar sobre o que, para mim, é impossível de dizer. A haver propósito no que escrevo, é esse.

Noutro poema, afirma-se que “o poeta/faz agricultura às avessas”…
É o que muitas vezes sinto. Que o que estou a plantar não é muito diferente do ventre que está a receber a semente. É como se a personagem da minha escrita fosse a terra ela própria. Deixo que a semente seja plantada em mim, ao mesmo tempo que a planto na terra.















Entrevista (que já segue o novo Acordo Ortográfico) publicada no JL 1056, de 23 de Março de 2011.

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