Saturday, April 2, 2011

Diário da Madeira 36

Sexo, pilas, drogas e outros prazeres e maldições. O dia estava bonito e os escritores da segunda mesa do Festival Literário da Madeira deixaram-se de precauções. Libertaram o verbo e, com isso, foram malditos, como o tema proposto. Uma sessão, portanto, sem tabus, a caminho de uma definição do que poderá ser isso de escritores malditos.
Para Valter Hugo Mãe, maldito começou por ser o que a dona Alicinha lhe chamava, quando ele roubava cachos de uvas do seu quintal. Só mais tarde se tornou terreno literário, quando com 15 ou 16 anos passou a comprar livros da editora Hiena. Malditos passaram a ser Baudelaire, Genet, Artaud e outros que tais. "Levava os livros como sangue de um crime dentro da pasta da escola que parecia pingar no chão um rasto vermelho", recordou o autor de A máquina de fazer espanhóis. "Os textos a pesarem-me na pasta haveriam de ser muitos, e eu sempre corado quando alguém percebia que não estava a ler as carochices inventadas para entreter os povos e anestesiar-lhes o pensamento". Foi este sentimento que o levou a pensar: "O escritor maldito será, por isso, aquele que tendencialmente lemos às escondidas, por representar um compromisso desconfortável, talvez induzindo a uma concordância com as ideias destemperadas que veicula. Noutro sentido, estando vivo, maldito pode ser o que nos cria um frisson entre o susto e o expectante que tanto nos fascina como nos desregula no cara a cara." E com o tempo uma conclusão impôs-se: "Na realidade, vistos com nitidez, os malditos são invariavelmente moralistas e jogam com o que nos pode ofender para que, ofendidos, pronunciemos a culpa e procuremos a terapia. Dito isto, explica-se simplesmente, os malditos são, afinal, boas pessoas".
Pegando em alguns exemplos que Valter Hugo Mãe deu - Lautréamont, Eduardo Pitta, Alberto Pimenta, José Emílio-Nelson, Isabel de Sá, A. Pedro Ribeiro e sobretudo Adília Lopes -, Isabela Figueiredo afirmou logo a abrir: "Não há nenhuma arte que não seja maldita. A arte é sempre amoral e imoral". Que maldição é esta? "Mostar que os escritores são pessoas normais, nem melhores, nem piores, e que revelam o que nos mandam calar na família, na igreja, na escola e na sociedade". E que temas são esses? "O que é privado: o sexo, o pé de atleta, a hipocrisia, as relações de interesse, no fundo, a lama e a merda de que somos feitos".
Foi essa liberdade que mais impressionou Sandro William Junqueira, quando descobriu a obra de Herberto Helder. E, entre vários exemplos, que não deixaram de quebrar outros tantos tabus, atirou: "Gosto de leitores que me dão pancada. Porque essa é uma das funções da literatura: dar uma outra visão das coisas."
A sessão ia animada, com muitas perguntas por parte do público, até que Raquel Ochoa, da plateia, lançou mais lenha para a fogueira: "E o que acham dos escritores que escrevem sob o efeito de qualquer droga ou alucinogénico?". O dia estava mesmo bonito, como no poema de Adília Lopes ("um dia tão bonito/ e eu não fornico").
No fim, Violante Saramago recolocou a questão: não será o escritor maldito também aquele que propõe rupturas sociais? "A ver como respondo a esta confusão", brincou Valter Hugo Mãe. E sintetizando, disse: "O que me interessa é saber o que é isto de ser mais do que uma pessoa e viver em sociedade. E os malditos que me interessam são os que têm um pensamento político". E fechou: "Não fumo cigarros, nem tomo drogas, nem bebo café ou álcool. A minha única alienação é aquela que entra pelos livros adentro".

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