Sunday, April 3, 2011

Diário da Madeira 66

Saber o que faz com que uns escritores sejam esquecidos é provavelmente tão difícil como perceber o que faz com que outros sejam lembrados. Só que deste últimos os leitores recordam os seus nomes, enquanto que dos primeiros, por defeito, pouco sobra do seu trajecto literário, da sua obra, da sua prova de vida. Mais do que uma mesa-redonda, a quarta sessão do Festival Literário da Madeira, que contou com a participação de Afonso Cruz, Eduardo Pitta, Violante Saramago e Antonio Scurati, com moderação de Francesco Valentini, foi um autêntico guia de leitura. Uma fuga à padronização do gosto ou às limitações do cânone.
Para levar adiante esta missão, Eduardo Pitta propôs um interessante exercício: ver que escritores eram conhecidos antes do 25 de Abril de 1974 e depois fazer a comparação com o pós-Revoluão. "A percepção pública não coincide com a história literária", afirmou. "Dizia Jorge de em 1969: 'esquece-se com demasiada facilidade que o facto de um poeta se sobreviver (silenciado, ou não reafirmando o que antes realizara) o não exclui da história literária'. Se substituirmos poeta por autor, o juízo é exemplar." Dado o mote, o autor de Aula de Poesia e Desobediência passou aos exemplos: "Nesses anos terminais da ditadura os grandes nomes tinham um estatuto correlato. Torga e Sophia eram estátuas vivas. O'Neill fez o retrato do país num punhado de versos: Não tu não mereces esta cidade não mereces/ esta roda de náusea em que giramos/ até à idiotia/ esta pequena morte/ e o seu minucioso e porco ritual/ esta nossa razão absurda de ser. Sena estava do outro lado do mundo. Namora, best-seller infalível, era o mais traduzido de todos. Natália e David animavam os salões. Régio, que já então tinha os estruturalistas às canelas, começava lentamente a sair de cena. Almeida Faria tinha 19 anos quando inventou o nouveau roman português. Eugénio era o 'poeta do Porto'. Menos incesados, José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira, Urbano Tavares Rodrigues e Vergílio Ferreira davam respeitabilidade à classe." Apresentada a lista, deixou a pergunta: "Quantos sobreviveram?".
Falar de esquecidos, como se viu, é reconstituir um passado que nem sempre teve oportunidade de se afirmar como futuro. Mas os escritores presentes assumiram-se como arqueólogos das leituras perdidas e continuaram a apresentar exemplos de autores que não deixaram de ler, mesmo quando não foram traduzidos para português - outra forma de esquecimento, como lembrou António Fournier.


Afonso Cruz falou Plotino e Platão, Gorki e Papini, Kazantzakis e Ireneu, entre muitos outros. E mostrando alguns livros, glosou em particular a continuação da Odisseia que Kazantzakis, mostrando que a literatura é uma viagem que nunca acaba. Começa antes da escrita e prolonga-se pelo mar adentro. Já Violante Saramago centrou a sua atenção em Aquilino Ribeiro. Traçando o seu percurso de de vida, citou três obras em particular: Quando os lobos uivam, Andam faunos pelos bosques e Volfrâmio.
Com a sua experiência de divulgador da Literatura Portuguesa em Itália, António Fournier escolheu três autores madeirenses que também não gozam do privilégio da lembrança: Edmundo Bettencourt, Albino de Menezes e António Aragão. E acrescentou a estes nomes muitas histórias insulares que mostram como cada esquecimento encerram uma surpresa: que o Funchal tinha um velho comboio e que foi a única cidade portuguesa a ser atacada na Primeira Guerra Mundial, que um madeirense é um dos actores da adaptação cinematográfica que John Huston fez do clássico de Herman Melville, estando precisamente dentro da Moby Dick, ou ainda que muitas foram que John Dos Passos proporcionou a William Carlos Williams na ilha.
As estes esquecimento, o italiano Antonio Scurati propôs outro: quando a ficção pode fazer esquecer o que se está a passar actualmente no seu país. Porque, como lembrou Violante Saramago, "podemos não ser partidários, mas somos sempre políticos". Com ou sem visibilidade.

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