Um mar de escritores
Era para ser a prova cabal da constância literária, garantiu David Machado, no Festival Literário da Madeira, que decorreu no Funchal entre dia 1 e 3 de abril. Não haveria maldições, esquecimentos, maltratos ou famas fugazes. Com o plano que gizou com o seu amigo João Tordo, o sucesso seria garantido. Rigorosos como os matemáticos, projetaram uma série de policiais sobre um assassino que só entrava em ação no primeiro dia de cada mês. Sem exceções. Um killer metódico, cerebral e eficaz. Sem remorsos. Para adensar a trama, haveria de surgir, lá para o meio, um incidente: em abril ele apenas conseguia matar no dia 2. O que era certeza passava a ser dúvida, dando início a uma grave crise pessoal e a um drama existencial. As ideias, como se vê, estavam alinhadas e os dois escritores, contou ainda David Machado, passaram às questões práticas: o ritmo da escrita, a alternância da autoria dos capítulos, o evoluir da narrativa. Tudo para cumprir, em 12 meses, 12 livros com 12 capítulos com 10 páginas cada… Está bom de ver que nem o Stephen King ou o George Simenon, conhecidos pela sua rapidez, seriam capazes de cumprir esta ambiciosa tarefa. Ou se calhar era David Machado que tinha problemas com a constância. Enquanto João Tordo escrevia um capítulo por dia, ele levava três, e as coisas pioravam quando não conseguia comprar o jornal e completar o seu habitual e inspirador sudoku. O assassino, afinal, nunca saiu de casa. Não matou ninguém.
E o projeto, na verdade, nunca existiu, mas quando o público se apercebeu disso já o autor de Deixem falar as pedras tinha conquistado a sua atenção. E feito de um embuste a melhor forma de explicar por que razão os escritores são como são: uns inconstantes, outros malditos, esquecidos, maltratados ou pouco agraciados pela fama. Até porque esse era mesmo o grande objetivo deste encontro promovido pelos Booktailors e pela editora Nova Delphi. Assumindo e reinventado o modelo das Correntes d’Escritas, o Festival Literário da Madeira pôs escritores a falar sobre escritores, navegando pelos muitos mares da literatura. O resultado não podia ter sido melhor: Uma organização exemplar, mesas suficientemente provocadoras para abrir o debate e uma arte de bem receber só à altura de uma região que há décadas é um destino turístico muito requisitado. E, agora, com um horizonte cultural mais alargado.
O público, por seu turno, correspondeu a esta iniciativa inédita na região, enchendo as duas centenas de lugares disponíveis. Ouviu histórias, como a de David Machado, mas também sugestões de leitura, metáforas, lembranças do passado e modos de entender a literatura. Pedro Vieira, por exemplo, apresentou a sua lista de escritores malditos, que começa em Brendan Behan (com quem partilha a máxima “sou um alcoólico com um problema de escrita”) e acaba em Céline, passando por Marx, Diego Maradona e Margarida Rebelo Pinto. Rui Zink brincou com a ideia de sucesso, falando dos escritores famosos que invejam a profundidade dos escritores difíceis, enquanto estes lamentam não ter a facilidade de expressão daqueles. José Mário Silva deu um exemplo dos “escritores do não” que Enrique Vila-Matas tão bem descreveu em Bartleby & Companhia, Aurelino Sousa Gomes de seu nome. E este personagem inventado tinha uma opinião bem particular: “Os escritores que fogem da fama só o fazem por uma razão: para se tornarem famosos”. Sem confirmação possível, a dúvida persistiu, embora a filha de Rubem Fonseca, presente no festival, tenha apresentado uma visão diferente: “O meu pai é o escritor que eu conheço que mais foge da fama. No entanto, gosta de andar pelas ruas, observar as pessoas e ver o que se está a passar”, revelou. E concluiu: “Para Rubem Fonseca, o escritor tem de ver sem ser visto. Ou seja, para o livro aparecer, o autor tem de se esconder”.
Esquecidos, contudo, não ficaram muitos escritores que hoje, por diversas razões, poucos leem. Violante Saramago recordou Aquilino Ribeiro, da mesma forma que Eduardo Pitta evocou a geração que era conhecida antes do 25 de Abril, deixando depois uma pergunta: “Quantos sobreviveram?”. Afonso Cruz falou dos autores que compõe o seu Olimpo. Entre outros, Plotino e Platão, Gorki e Papini, Kazantzakis e Ireneu. Valter Hugo Mãe apresentou a sua coleção de malditos, que inclui Baudelaire, Genet, Artaud, Lautréamont, Alberto Pimenta e outros que tais. Já Sandro William Junqueira recordou a descoberta de Herberto Helder. Com esta corrente de testemunhos, o mar da Madeira não foi o cerco que muitas vezes representa, como lembrou Graça Alves. Foi, pelo contrário, uma inspiração.
Texto (que já segue o novo Acordo Ortográfico) publicado no JL 1057, de 6 de Abril de 2011
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