Thursday, March 24, 2011

Don DeLillo: Em câmara lenta

Só o fotógrafo viu o corpo atrás do arbusto, a prova de um crime até aí insondável. Em Blow-up, o célebre filme de Antonioni, ver é um acto demorado. De ampliação em ampliação, fecha-se o cerco ao mistério que aquela fotografia acidental esconde. E quanto mais distorcida fica a imagem, ao ponto de se aproximar da abstracção, mais fielmente denuncia os indícios do assassinato. É dessa mesma atenção ao detalhe, desse olhar continuado, que se faz o último romance de Don DeLillo, Ponto Ómega. Tal como no filme de Antonioni, o primeiro impacto é sempre enganador. Revela mas também esconde, abre portas mas fecha muitas janelas. “Era impossível ver demasiado. Quanto menos havia para ver, quanto mais atentamente ele olhava, mais coisas via.”, lê-se na sequência de abertura do livro, quando um anónimo observa um outro filme, Psycho, de Hitchcock, mas na lenta projecção concebida por Douglas Gordon que, em vez de durar duas horas, se estende por 24. “Eis o propósito. Vermos o que aqui está, olharmos e sabermos finalmente que estamos a olhar, sentirmos a passagem do tempo, despertos para o que está a acontecer nos registos mais insignificantes do movimento (pág. 9/10)”.

Ponto Ómega é, na verdade, um romance cheio de cinema. O que une as várias personagens é um documentário minimalista que Jim Finley quer realizar sobre Richard Elster. Depois de dois anos num departamento de estratégia militar do governo norte-americano, durante a invasão do Iraque, este homem de 73 anos (como DeLillo, em 2010, quando esta obra foi lançada) encontra-se num retiro espiritual. No deserto do Arizona, pouco mais faz do que ler alguma poesia, contemplar o horizonte, repisar memórias. É um teórico. Sempre o foi, principalmente quando ambicionava uma “guerra em haiku”. Uma “guerra em três versos”. O enredo é aparentemente simples – surgirá ainda uma mulher, a filha de Elster – e quase que replica o jogo de forças que Hitchcock tão bem geriu naquele filme de suspense: uma vítima colateral, um homem obscuro, alguém que procura informações.

DeLillo descola, desde o início, das obrigações narrativas. O ritmo é lento, imperceptível. Quase nada acontece, como num filme que cai de 24 frames por segundo (a velocidade da nossa percepção) para dois. As descrições são secas, precisas, minuciosas. Tudo se passa em câmara lenta. Porque a esta desaceleração corresponde o estádio final da consciência humana que Elster (e o autor?) busca, a possibilidade de se dar “um salto para fora da nossa biologia”. Ao 16.º romance, DeLillo interpela o fim. Olha-se ao espelho e descobre nele as grandezas destroçadas do país que sempre descreveu: a América à beira do abismo.


Texto publicado no Jornal i, a 5 de Março de 2011.

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