Gordon Cheers tem um sonho: publicar o maior livro do mundo. Há duas décadas que o persegue. Nas editoras em que trabalhou, como a Penguin e Random House, apresentou-o sempre como o projeto da sua vida. Uma prioridade. Mas num tempo em que se pensa pequeno, a sua proposta nunca foi acolhida com entusiasmo. Desapontado, o editor australiano, hoje na casa dos 60, tomou sempre a mesma decisão: despediu-se. E procurou uma outra porta a que pudesse bater. Mas a sorte não se cruzou no seu caminho. Outra vez desiludido, novamente sem hesitar, tomou a decisão que se impunha: criar a sua própria empresa, a Millennium House. Com uma extraordinária dedicação, lançou vários livros nos últimos anos, o que lhe permitiu juntar dinheiro suficiente para, com um sorriso no rosto e um entusiasmo transbordante, apresentar a concretização do seu sonho na 62.ª edição da Feira do Livro de Frankfurt, que decorreu entre os passados dias 6 e 10.
Terra, assim se chama o maior livro do mundo, ainda só é uma maquete, à procura de compradores para as 31 cópias que serão feitas, mas o que se vê já impressiona. Desde logo pelas dimensões, 1,8 metros de largura por 2,75 de altura. Depois, pela beleza das imagens e dos mapas. Cada fotografia – como a de Machu Picchu – é feita a partir de mil fotografias de pormenor, para que a sua definição seja a melhor possível. Sendo um atlas, a área de especialização editorial de Gordon Cheers, a sua escala é irrepetível: 1 metro no livro para 15,600 000 na realidade. O que, em alguns casos, passa para 1 por 5,300 000. “Mais do que um livro, este é um legado”, diz o editor, lembrando o atlas com características semelhantes que Klencke ofereceu a Carlos II de Inglaterra, há 350 anos. “Apesar da fúria dos e-book e do monopólio Google, este é um livro que vai ficar”, acrescenta. “É o meu contributo para a Humanidade. Algo pelo qual vale a pena viver”.
O sonho de Gordon Cheers é a imagem que melhor sintetiza e capta a essência do maior encontro de editores de todo o mundo. Na Feira do Livro de Frankfurt, tudo é grande. Os edifícios, os corredores, o número de editores envolvidos, a área dedicada aos agentes, com filas e filas de mesas para 12 horas seguidas de reuniões, e a quantidade de livros expostos, vendidos e comprados. Glosando um dos títulos mais famosos do último Prémio Nobel da Literatura, Mário Vargas Llosa, cuja atribuição foi efusivamente festejada em Frankfurt, não haverá maior catedral dedicada ao livro. E são muitas as conversas que animam o seu interior.
Para se ter uma ideia do que é Frankfurt talvez seja bom imaginar uma torre de babel em forma de feira comercial. Ao contrário de outros certames da área da cultura, como os das artes plásticas, a do Livro tem um impacto territorial e linguístico muito visível. É uma espécie de mapa-múndi em que os países vão sublinhando os seus atributos. Ao centro, o vigoroso mercado editorial alemão, que conduz a programação, já que os escritores convidados são aqueles que acabam de ser publicados no país.
Este ano eram cabeças de cartaz dois norte-americanos: Bret Easton Ellis, com o seu novo romance Quartos Imperiais, sequela de Menos que Zero, e Jonathan Franzen, que em agosto fez capa na revista Time, que o considerou o melhor retratista da atual vida nos EUA. No famoso sofá azul, em que se entrevistam escritores de 30 em 30 minutos, Franzen esforçou-se por falar alemão, que aprendeu durante os anos em que estudou em Berlim. A opção agradou à plateia, sobretudo porque o autor de Freedom manteve um animado diálogo com o tradutor. Ao contrário de edições passadas, este ano sempre que um autor estrangeiro se sentava no sofá azul as suas respostas eram traduzidas para alemão. Não se ouvia a sua voz, apenas a do tradutor, através das colunas. Franzen não se entendeu com o sistema, já que ouvia o eco do seu pensamento mas numa língua diferente. E que também entendia. Zangou-se com esse “deus” que lhe roubava a voz e lançou-se sem rede pelas declinações do alemão. O drama divertiu quem assistia, mesmo aqueles que nada percebiam do que por ali se dizia, pois só foram espreitar a nova cara bonita da literatura mundial. Até porque a certa altura, o “deus/tradutor” pediu licença, saiu da sua cabine de trabalho e foi sentar-se ao lado de Franzen. De “pai tirano”, transformou-se em “anjo da guarda”, ajudando o escritor sempre que lhe faltava uma palavra.
Mais solene e simbólica foi a conferência de imprensa e depois a entrevista de David Grossman, o escritor israelita que foi distinguido com o Prémio da Paz, atribuído pelos livreiros alemães. Crítico da atuação do governo do seu país, defensor do diálogo com o mundo árabe – mesmo depois do seu filho ter morrido na sequência de um míssil do Hezbollah –, Grossman recordou o longo caminho para o entendimento entre os povos. E nesse percurso a escrita é, para si, uma forma de perceber o Outro. Visivelmente emocionado, o autor de Ver: Amor recordou a importância de, sendo judeu, receber um prémio na Alemanha, onde ecoam ainda as marcas da II Guerra Mundial.
Se a Alemanha ocupa o centro deste planisfério editorial, os restantes países espalham-se em todas as latitudes. Os europeus mais ou menos juntos, com Portugal ao lado do Brasil, e nas proximidades dos sul-americanos. Em vários andares organizam-se pequenas e médias chancelas, bem como grandes grupos editoriais, que não hesitam em mostrar o seu poder económico. Há uma secção só dedicada aos anglo-saxónicos, cujo esquema empresarial não tem comparação com nenhum outro, havendo ainda espaço para as novas tecnologias. Aí, a adaptação de conteúdos para suportes eletrónicos e a impressão on-demand (para pequenas tiragens) continuam a marcar a agenda. Mas também é possível encontrar suaves contradições. Quando tudo converge para o digital, a marca de cadernos Moleskine apresentou os novos blocos de apontamentos perfeitamente adaptados às últimas gerações de telemóveis e leitores de e-books. Assim, o leitor poderá tomar as notas à mão enquanto lê no ecrã, entre pixéis e megabytes.
Como país homenageado, a Argentina esteve em destaque. Alan Pauls, Juan Gelman, Pablo De Santis e Cristina Norton, há muito radicada em Portugal, foram alguns dos escritores presentes, ao mesmo tempo que se evocou a herança literária de Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sabato, Jorge Luis Borges ou Júlio Cortázar. Também homenageado foi José Saramago, que em vários pavilhões tinha fotografias que lembravam a sua vida e legado . Além de sessões públicas, com leituras de excertos de romances seus, houve também um encontro dos editores responsáveis pela sua obra.
E é destes encontros que se faz a Feira do Livro. Mais do que um local de venda e aquisições de direitos, Frankfurt é sinónimo de contactos pessoais. Com a internet, a comunicação é mais rápida, os livros circulam em tempo real e os catálogos são re-enviados assim que são feitos. Só que nada substitui o convívio humano. Quem o garante é Anja Saile, 43 anos, uma das muitas agentes que tem em Frankfurt um dos eixos do seu ano de trabalho. A representar vários autores portugueses, como João Tordo ou Dulce Maria Cardoso, Anja tem nesta reunião anual de editores uma oportunidade para conquistar terreno para as letras lusófonas, cujo mercado não é vasto. “O José Saramago abriu muitas portas, mas mesmo assim a literatura em língua portuguesa ainda não é uma prioridade para muitos editores”, comenta. É preciso ter paciência e saber apostar na altura certa. “Porque se o primeiro livro corre mal, não haverá segunda oportunidade”. O facto de o Brasil ser o país homenageado em 2013 – para o ano será a vez da Islândia – pode ser uma grande ajuda. Essa é pelo menos a expectativa de Nicole Witt, hoje à frente da Agência Literária Ray-Güde Mertin, que tem a seu cargo os direitos internacionais de escritores como Gonçalo M. Tavares, José Eduardo Agualusa ou Mário de Carvalho. O número de reuniões que teve ao longo dos quatro dias da feira – cerca de 250 – são um sinal desse entusiasmo crescente. E o seu trabalho, como o de todas as pessoas que fazem de Frankfurt um acontecimento à escala mundial, é fazer com que esse entusiasmo seja protetor dos bons livros. “Editam-se centenas, milhares de livros em todo o mundo”, atira Nicole. “ E queremos sempre que os nossos possam despertar a atenção de quem os edita, para chegar a quem os lê”. Talvez por isso, o seu catálogo de autores é limitado, para dessa forma garantir a dedicação de todos os membros da sua equipa. Porque grande ou pequeno, um livro, antes de ser um objeto, é sempre o resultado daquela máxima pessoana, segundo o qual “Deus quer, o homem sonha a obra nasce”.
In JL 1045, de 20 de Outubro de 2010
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