Engenheiro, cantautor, trompetista, jazzista, poeta, romancista, contista, anarquista, surrealista e patafísico. Eis como poderíamos compor o extenso bilhete de identidade de Boris Vian. Atacado desde cedo por uma saúde frágil, nunca deixou no entanto de aproveitar a vida até ao limite, durante a boémia parisiense do pós-guerra, da qual é um dos maiores símbolos. A sua obra literária espelha essa postura, que não poucas vezes lhe valeu o epíteto de escritor maldito. Foi até acusado de atentado à moral pública, quando se descobriu que Vernon Sullivan, o autor de Irei Cuspir-vos nos Túmulos, era afinal um pseudónimo. Não espanta por isso que Boris Vian seja também autor destes Escritos Pornográficos que agora chegam a Portugal, numa edição ilustrada por Pedro Vieira.
Nestes poemas e contos, é a rima solta e engenhosa, tão presente na sua poesia e nas suas canções, que encontramos. Eram famosos os improvisos noturnos de Boris Vian, no Hot Club de França, no cabaré Milrod l’Arssouille ou em casa de amigos, e muitas destas composições líricas e libidinosas nasceram aí. Talvez por isso, a qualidade seja desigual, quer como poemas, quer como criações pornográfica. Liberdade (a partir de uma poema de Paul Eluard), Durante o Congresso e As Fufas são breves cantilenas, em que o sujeito poético oscila entre o concreto e o indefinido, a dúvida e a certeza, o entusiasmo e a repulsa. Já os outros dois poemas, A Marcha do Pepino e A Missa em João Menor, são bons exemplos da ironia de Boris Vian e do seu ataque sem tréguas a qualquer instituição. Por último, Drencula – Excerto do Diário de David Benson revisita a mitologia dos condes da Transilvânia, num cómico delírio sexual.
Não se pense, contudo, que estes poemas e contos fazem do autor de A Espuma dos Dias ou O Arranca Corações um entusiasta da pornografia. Isso mesmo admitia o seu compagnon de route Noël Arnaud, que em 1980 assinava o prefácio a estes escritos. “É preciso admiti-lo: Boris Vian apreciava pouco a pornografia, não molhava nela a sua pena e via nesse género sobretudo um exercício literário como outro qualquer que preferia deixar para os especialistas, incluindo alguns grandes autores”. E acrescentava: “Era-lhe, de tempos a tempos, uma oportunidade para se divertir ou para pagar uma aposta”. Ideia que sai reforçada depois da leitura de Utilidade de uma literatura Pornográfica, que abre este volume. Trata-se de uma conferência em que Boris Vian desconstrói alguns autores (como Sade ou Henry Miller) e definições da pornografia, para lhe opor apenas uma: “É perigoso acreditar que um livro possa influenciar um leitor… Se assim fosse, não haveria ninguém à face da terra desde a história do primeiro crime.” Por isso formula o escritor a seguinte evidência: “Não há literatura erótica senão no espírito do erotómano”. Daí que qualquer texto possa ser incluído nessa categoria, pois como defende Fernando Pessoa, no famoso poema Isto: “Sentir? Sinta quem lê!” E toda a leitura é sempre poliformicamente sensual.
In JL n.º 1044, de 6 de Outubro de 2010
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