O escritor brasileiro, Prémio Camões em 2003, está de volta ao romance. O Seminarista, que esta semana chega às livrarias portuguesas, mostra como a sua pontaria continua afinada. E a reforma, aos 85 anos, bem longe do horizonte. É que tanto para si, como para o protagonista desta história, o crime e a literatura estão sempre à espreita
Foi com estrondo que Rubem Fonseca regressou ao romance, com O Seminarista, lançado no Brasil em 2009. Habituados à discrição do escritor, que raramente aparece em público e não concede entrevistas, jornalistas, críticos e leitores brasileiros não deixaram de se surpreender com um
aparente renascimento. Durante alguns meses, Rubem Fonseca deu que falar. Mudou de editora, quebrando uma relação de mais de 20 anos com a Companhia das Letras. Na Agir, do grupo Ediouro, de par com este inédito, publicou dois livros antigos, iniciando a re-edição das suas obras. Além disso, não se coibiu de participar ativamente na promoção de O Seminarista. Com a ajuda do filho, José Fonseca, criou um vídeo no qual lê um excerto do primeiro capítulo. Na imprensa, publicou um texto sobre as vantagens dos e-books, já que os seus livros passaram a estar disponíveis nesse formato. Foi um regresso à matador, com o carregador bem cheio e o dedo colado ao gatilho. De tal forma que alguns disparos chegaram a Portugal, onde a sua obra também está em foco a partir desta rentrée. Com O Seminarista, a Sextante dá início à publicação regular dos romances e contos de Rubem Fonseca, que prosseguirá, em Fevereiro de 2011, com Bufo & Spallanzani (de 1986).
“Sou conhecido como o Especialista, contratado para serviços específicos. O Despachante diz quem é o freguês, me dá as coordenadas e eu faço o serviço. Antes de entrar no que interessa – Kirsten, Ziff, D.S., Sangue de Boi – eu vou contar como foram alguns dos meus serviços”. Lemos o primeiro parágrafo de O Seminarista e reconhecemos automaticamente o seu autor. Como uma
impressão digital, o estilo de Rubem Fonseca é inimitável. O que não deixa de ser curioso, já que muitas são as tentativas de recriação desse universo literário. Os seus protagonistas são
personagens sedutoras: inteligentes assassinos profissionais, detentores de uma equilibrada moralidade, amantes de coração cheio e homens de consciência pesada. Ou então são advogados e criminalistas, como o famoso Mandrake, de A Grande Arte e de outras histórias, que têm dificuldade em perceber de que lado estão, às vezes defendendo no mesmo processo as duas partes em conflito.
Só que a esses ingredientes, que também encontramos nos clássicos do policial, Rubem Fonseca acrescenta um fermento literário, histórico e cultural. Veja-se o caso de O Seminarista. O Especialista, José de seu nome, não é um matador qualquer. É letal com uma arma na mão, quer seja uma Glock, quer seja uma Beretta, mas os seus interesses não se circunscrevem ao métier.
“Gosto de ver filmes. Também gosto de ler. Principalmente poesia”, diz-nos no início do segundo capítulo. Mas não se pense que estes interesses apenas servem para compor a personagem. Eles são o centro das narrativas de Rubem Fonseca. Servindo-se da minúcia dos atiradores, como da dos advogados em outras histórias, o autor de O Caso Morel vai investigando e desconstruindo, à
medida que o livro avança, algumas das principais referências da cultura universal. No caso de O Seminarista, José é um cultor dos clássicos. Cita abundantemente Horácio, Cícero, Séneca e Plínio, O Velho, mas a certa altura é ele próprio criador de citações de outros tempos. Nestas passagens, Rubem Fonseca assume-se como um fazedor de tradições e um intérprete de obras alheias. É impossível, por exemplo, ler algumas obras de Philip Roth sem lembrar as glosas “ao síndrome de Zuckerman”, presente em livros como Diário de um Fescenino.
O Seminarista é, então, um pretexto para Rubem Fonseca deambular pelas principais conquistas da Humanidade. Ao movimento da personagem, que queria reformar-se mas que se vê de novo numa caça ao homem depois de se apaixonar por uma alemã, corresponde também o do autor
pelas teias do cinema (este bem poderia ser o argumento de um pulp movie), da literatura brasileira (neste caso, à obra do pré-modernista Lima Barreto), da história de Portugal (José mudará de apelido, assumindo a sua genealogia, que remonta à Batalha de Alcácer Quibir), do crime, do erotismo e do próprio Brasil. E é uma verdadeira viagem que este romance nos oferece. Sem o fôlego narrativo de A Grande Arte ou Agosto, é certo, mas com argumentos suficientes para confirmar Rubem Fonseca como um dos grandes escultores da língua portuguesa.
In JL nº 1043, de 22 de Setembro de 2010.
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