Wednesday, March 28, 2012

Redescobrir Clarice Lispector




Dois livros acabadinhos de chegar à minha mesa. O Lustre e Água Viva marcam o início de uma nova fase da divulgação de Clarice Lispector em Portugal. A Relógio d’Água adquiriu, até 2018, os seus direitos de publicação e promete levar a cabo uma edição exaustiva da obra da grande escritora brasileira, revelando até facetas pouco conhecidas, como os seus livros infanto-juvenis (A Mulher Que Matou os Peixes, A Vida Íntima de Laura, O Mistério do Coelho Pensante, Quase de Verdade e Como Nasceram as Estrelas) e dois álbuns lançados sob pseudónimo com conselhos para as mulheres (Correio Feminino e Só para Mulheres – Conselhos, Receitas e Segredos).
Esta renovada atenção à escrita de Clarice Lispector não esquecerá a reedição dos livros que já integram o catálogo da Relógio d’Água: Perto do Coração Selvagem, Laços de Família, A Paixão segundo G. H., A Maçã no Escuro, Uma Aprendizagem ou O Livros dos Prazeres, A Hora da Estrela, Contos Reunidos e A Cidade Sitiada. A estes juntam-se agora O Lustre e Água Viva e, também em 2012Para não Esquecer e Um Sopro de Vida. Se a esta notícia juntarmos a tradução, em 2010, na Civilização, da biografia de Benjamin Moser, podemos dizer que a obra Clarice Lispector nunca esteve esteve tão acessível.
Publicado em 1946, O Lustre é o segundo livro de Clarice Lispector. Como nota Benjamin Moser na referida biografia, ao contrário do fragmentário Perto do Coração Selvagem, o seu primeiro romance, aqui estamos perante um conjunto coerente. “Apesar de os seus extensos segmentos descreverem propositadamente acontecimentos, consistem sobretudo em longos monólogos interiores, interrompidos apenas por um singular e perturbador fragmento contendo diálogo ou ação”, afirma o investigador norte-americano. “O livro progride em ondas lentas que se elevam, alterosas, nos momentos de revelação. As páginas entre estas epifanias são precisamente os momentos em que o livro se torna mais intolerável para o leitor, que é forçado a seguir o movimento interior de outra pessoa com um detalhe microscópico. Acostumado às epifanias, esperando estímulos e surpresas permanentes, o leitor que aborde o livro pela primeira vez depressa se sente desconcertado.”
Água Viva, por seu turno, foi publicado em 1973 e, ainda segundo Moser, "não se parece com nada que tivesse sido escrito na época, no Brasil ou em qualquer outro lugar. Os seus parentes mais próximos são visuais ou musicais, uma semelhança que Clarice enfatiza ao transformar a narradora, uma escritora, nas versões iniciais, numa pintora; na altura, ela mesma dava os primeiros passos na pintura”.
Dois livros acabadinhos de chegar à minha mesa. E que ainda não li. Algo que vou ter de resolver brevemente.

A falsa dicotomia entre o rural e o urbano de Álvaro Domingues




É um livro em tudo original, até na sua edição. Tem uma chancela - a Dafne - mas esteve em subscrição pública para recolher o dinheiro necessário à sua publicação. Vida no Campo, de Álvaro Domingues, 52 anos, prof. da Faculdade de Arquitetura do Porto, é tão híbrido como as paisagens que descreve. Para evidenciar a fronteira cada vez mais ténue entre o rural e o urbano, o especialista em Geografia Urbana socorre-se de fotografias suas, poemas alheios, teses comuns e análises próprias. Um livro feito de retratos de um país composto de mudança


A brincar, costuma dizer: “Fui primeiro a Paris do que a Lisboa”. Poderia ser sobranceria, ou até sinal de um certo cosmopolitismo bacoco. Mas não. É apenas a sua forma de desmitificar algumas ideias feitas, enraizadas na sociedade nas últimas décadas, fruto da propaganda do Estado Novo e das idealizações turísticas do século XXI. Melgaço, onde nasceu, em 1959, “nunca foi, nem é, esse mundo remoto e desligado da terra como muitas vezes é pintado”. Dessa terra no limite norte de Portugal, lembra, partiu o primeiro autocarro semanal para Paris. E nos seus tempos de criança era tão frequente falar-se da “próxima vaca que ia parir”, como da “atualidade da Nova Caledónia”, onde morava um conterrâneo. Ao quotidiano difícil da vindima e do trabalho da lavoura, sobrepunha-se um manto diáfano de urbanidade da diáspora, animado pelas notícias da emigração e das mundividências que se cruzavam.
É precisamente essa realidade multifacetada, menos linear do que se possa supor, que Álvaro Domingues tem tentado divulgar em investigações universitárias e, agora, numa tetralogia que cruza fotografia e ensaio. Sempre com a ruralidade debaixo de olho. No conjunto, estes livros são “uma metáfora sobre a perda do Portugal Rural e um antídoto contra o mau viver pelo despovoamento e abandono, ou, noutro registo, pela profunda metamorfose que vai lavrando pelo país dos (ex)agricultores com o desaparecimento das suas práticas ancestrais, modos de vida, território e paisagens”, como o autor nos explica, citando o que escreveu na introdução do 2° volume da tetralogia, Vida no Campo, pronto para ser publicado (ver caixa). E acrescenta: “Esta não é uma questão menor. Como a língua ou a história, a paisagem é um poderoso marcador identitário, uma casa comum. E não há paisagens para sempre. Elas são o registo de uma sociedade que muda e, se a mudança é tanta, tão profunda e acelerada, haverá disso sinais, para além de pouco tempo e muito espaço para compreender ou digerir as marcas e formas como se vão atropelando mutuamente, ora relíquias, ora destroços”.
Zona de pasto ao lado de grandes barragens, ovelhas num bebedouro à beira de uma estrada, vivendas com lojas no piso térreo, ruínas postas à venda em grandes empresas de imobiliário, viadutos que atravessam aldeias, campos de cultivo colados a áreas industriais, uma corda de roupa estendida entre dois pilares de uma estrutura rodoviária, cabos de alta tensão sobre casas e campos ou alfaias agrícolas atrás de estádios de futebol com projetos arquitetónicos premiados internacionalmente. Eis algumas das muitas imagens - são cerca de 300 em a Vida do Campo - que Álvaro Domingues captou de norte a sul do país, de forma a evidenciar “a falsa dicotomia entre o rural e o urbano”. Ou, como diz: “Continuar a insistir na dualidade urbano/rural é como olhar para a sociedade e território com conceitos desfocados. A realidade é o que é e os conceitos são apenas invenções para tornar claro o que é complicado”. Ou, como reforça: “Vida no Campo é sobre isto tudo: mitologias do último país rural da Europa que persistem em inscrever-se no imaginário coletivo e, ao mesmo tempo, as imagens bucólicas e os destroços desse mundo perdido, variando entre calamidades e incêndios, resorts para todos os gostos com muita relva e espaço verde, turismo rural, desertificação ou, ao contrário, casas e estradas por todo o lado”.
Neste cenário, uma conclusão é óbvia: o trauma da perda de um mundo rural está longe de ser resolvido ou apaziguado. “É também disso que se trata neste jogo de espelhos onde não se percebe exatamente o que é que objetivamente se perdeu, mas muitos creem que foi o próprio paraíso, a versão bucólica e pastoral do mundo rural mais que perfeito, como Adão e Eva antes da serpente”. Álvaro Domingues não tem dúvidas. Neste caso, como nos da psicanálise, Freud explicaria que estamos perante o trauma ou o “mau luto” pela perda da paisagem que deixou de ser o que supostamente era. O pensamento também atormenta a paisagem.


Foi um vizinho de Melgaço, colega da faculdade e viajante por terras das Américas, que comprou para Álvaro Domingues uma primeira máquina fotográfica, selando, sem o saber, o destino do amigo. Paga em prestações com os “primeiros dinheiros que ganhou” - começou a dar aulas quando ainda frequentava o 3° ano da licenciatura em Geografia, na Universidade do Porto - essa Nikon passou a ser uma companhia diária. Os primeiros disparos surgiram sem intenção específica, guiados apenas pelas regras do ofício e as lições de Orlando Ribeiro. “Para ler a paisagem, é preciso ganhar cota”, dizia o geógrafo aos seus alunos. E Álvaro Domingues não deixou de subir a montes e colinas, elevações e penhascos para, com o olhar distanciado, perceber não só como o homem modificou a natureza, mas como esta também o condicionou.
Mais tarde, porém, a sua rotina fotográfica desviou-se das morfologias e taxionomia do povoamento e de outras ferramentas de análise geográfica, que no entanto nunca deixou de estudar, como demonstra o livro Políticas Urbanas II que editou, com Nuno Portas e João Cabral, na Gulbenkian, em 2011, depois de um estudo semelhante e com os mesmos parceiros de 2004. E não faltam ensaios e conferências no seu currículo académico, hoje exercido na Faculdade de Arquitetura do Porto. O olhar de Álvaro Domingues, porém, virou-se para essa fronteira cada vez mais ténue entre o rural e o urbano, entre o campo e a cidade. Aos poucos, os seus arquivos encheram-se de imagens que documentavam uma profunda “hibridez”, sendo essa, na sua visão, um das principais marcas que caracteriza Portugal.
De início, não adoptou nenhum método, nem sentiu a obrigação de percorrer Portugal de lés-a-lés. Apenas ligou o “radar”, essa atenção pessoal e transmissível que nos liga ao mundo, e esperou que a realidade inundasse a sua máquina fotográfica. Em suma: deixou-se surpreender. E as surpresas foram muitas, em particular aquelas que punham em causa o “discurso oficial” da geografia e revelavam as “nossas incompreensões”.
Em A Rua da Estrada, o 1° volume desta teatralogia e ponto de partida para uma curta-metragem homónima de Graça Castanheira (ainda em rodagem), Álvaro Domingues mapeou o modo estatisticamente mais comum de urbanização: a estrada. “Essa coisa mal-amada pela mesma razão de muitas outras coisas cuja identidade é flutuante, não encontrando estabilidade por aquilo que é, mas sim pelo que deixou de ser ou ainda não é”, descreve. “Quando as estradas eram estradas, não havia os problemas que hoje há. Estradas eram estradas, boas ou más, e ligavam povoações, vilas e cidades. À beira da estrada havia fontes para matar a sede de animais e pessoas; havia miradouros, valetas e sombras para descanso e merendas”.
Mas o que a sua objetiva fixava era muito diferente: “A rua da estrada perdeu quase toda a poética e a estética da lonjura e da evasão. Já não é o traço do asfalto que se acomoda à morfologia da paisagem, as subidas gloriosas, os altos com vistas de perder a respiração, o serpentear ao longo de um vale ou um traço que se funde no horizonte de uma planície”. Pelo contrário, como sublinha, apoiando-se em conceitos que foi buscar não só à Geografia, mas também ao Urbanismo, à Antropologia e à Sociologia, “a estrada-rua mistura tudo num conflito permanente, camiões e peões, carros e autocarros, motorizadas e patins em linha, cruzamentos com outras estradas. Há quem simplesmente passe e há quem queira sair e entrar, estacionar ou atravessar a estrada. Rápida de mais para quem lá vive, lenta e congestionada para quem lá passa. Um desassossego que não se resolve com passadeiras, semáforos, multas, rotundas e outros truques de acalmia de tráfego”.


Neste trajeto, o que mais despertou a sua atenção foram as edificações que cresciam ao correr da via pública, respondendo às necessidades humanas, num emaranhado de estilos, atividades agrícolas, industriais e sociais. Percurso semelhante será feito no 3° volume da tetralogia, intitulado Volta a Portugal, e que tem como ponto de partida as míticas caravanas do ciclismo e as paisagens que então se revelavam na comunicação, radicalmente transformadas nos últimos anos, como as planícies da Amareleja, em pleno Alentejo, que atualmente acolhem a mais alta tecnologia na área dos painéis solares. O último tomo abordará, por seu turno, esses “buracos negros ou túneis do tempo a que chamamos auto-estradas”, como diz a brincar. Terá como título Entre nós: de auto-estrada.
Não se pense, contudo, que este trabalho de cartografia tem na sua essência um olhar exterior, como aqueles estudos sobre a música pimba ou as festas populares, mais assentes na paródia do que na compreensão. Ao contrário de muita opinião pública, Álvaro Domingues não adjetiva esta malha urbana e rural de “caótica” ou “feia”, fruto de uma construção civil desenfreada (que reconhece haver) ou de uma corrupção tentacular (que diz existir em todas as sociedades). “Não podemos dar como explicação o que precisa de ser explicado”, afirma. “Estamos perante realidades complexas e para as compreender precisamos de novos instrumentos. Somos uma sociedade pós-moderna que nunca chegou a ser moderna, uma economia pós-industrial sem nunca ter sido industrial. Temos um discurso de país rico quando na realidade não o somos”.
Talvez seja mais correto afirmar, como sugere, que “Portugal é o país mais exótico do mundo”, fazendo jus à sua condição de semi-periferia, segundo a conceção de Boaventura de Sousa Santos. E, para Álvaro Domingues, há nele beleza suficiente para “não termos problemas de autoestima”. Basta deixar cair as imagens mitificadas e renovarmos o olhar e o saber. É com essa intenção que está a trabalhar num novo conceito, o de Paisagens Transgénicas, que enunciou pela primeira vez na coletânea de ensaios Arquitetura em Lugares Comuns, também uma edição da Dafne, como A Rua da Estrada e Vida no Campo. Um termo que criou para “ultrapassar enviesamentos, bloqueamentos e ilusões de conhecimento em torno dos conceitos vagos de paisagem - paradoxalmente considerados claros e classificáveis em taxionomias estáveis -, tentando diminuir o ruído de fundo e a cacofonia existente, para melhor perceber o que de facto é mais importante no mal-estar social que se exprime no discurso e nas representações sobre a paisagem tornada assunto e bem público, e elemento de identidade e distinção face aos processos acelerados da globalização-massificação e do sentimento de perda de identidade”. O mundo é composto de mudança. A paisagem também.














Texto publicado no JL 1081, de 7 de Março de 2012

Monday, March 26, 2012

Viagem Sentimental II

Cartaz do III Encontro Livreiro, desenhado pelo Irmão Lúcia

Livraria Culsete, casa do encontro

Manuel Medeiros, na intervenção de abertura do encontro
 
Fátima Ribeiro de Medeiros, uma das organizadoras do encontro 

 Luís Guerra, um dos organizadores do encontro

Sara Figueiredo Costa, uma das organizadoras do encontro (falta a Rosa Azevedo, que não consegui fotografar, já que andava sempre de um lado para o outro com o microfone)

A embaixada de Portalegre com notícias de resistência
 
Conversas, testemunhos, histórias, interrogações
 
A conta da minha família na Culsete

Eis a crónica fotográfica do III Encontro Livreiro que juntou ontem, em Setúbal, mais de 50 pessoas ligadas aos livros, entre livreiros, editores, estudiosos, jornalistas e leitores. O texto sobre o que por lá se passou fica para mais tarde. A triste notícia da morte de António Tabucchi obriga-me a outras escritas.

Viagem Sentimental I

 Escola Secundária Sebastião da Gama

Gare Rodoviária da Av. 5 de Outubro

Gare Rodoviária da Av. 5 de Outubro 

 Tróia, do outro lado do Sado.

Vitória Futebol Clube 

Estátua do Bocage

Domingo em Setúbal, para o III Encontro Livreiro. Reencontro com o passado, com memórias, casas, ruas, espaços, pessoas. Uma viagem sentimental.

Persépolis

Leitura deste fim de semana: Primeiro o livro, de Marjane Satrapi, editado agora em Portugal pela Contraponto, depois o filme, realizado pela própria autora e por Vincent Paronnaud.

Saturday, March 24, 2012

Aprender a rezar en la era de la técnica

Leituras de fim de semana: Aprender a rezar en la era de la técnica, no Suplemento Babelia, do El Pais. "No cabe ya dudar de que el portugués Gonçalo M. Tavares (Luanda, 1970) se ha convertido en un nombre irrenunciable en la actual narrativa europea. Y decimos europea porque su obra se enmarca, o más bien revitaliza, la sediciosa y enérgica tradición que se ha identificado con la caída del Imperio de los Habsburgo, decisiva para la constitución de nuestra desconfianza del mundo", afirma Francisco Solano.

El jovem Saramago

Leituras de fim de semana: El Jovem Saramago, no Suplemento Babelia, do El Pais. "Claraboya es una novela transgresora para su época y su contexto social desde el punto de vista temático (y probablemente por ello, por no eludir aspectos como el incesto o el amor homosexual, no consiguió ver la luz en su día), que se constituye en un magnífico pórtico de entrada a la catedral que es la obra narrativa de Saramago", afirma Antonio Sáez Delgado.