Thursday, April 7, 2011

David Machado: Mentiras verdadeiras


“A mentira é o tempero da verdade”. No seu segundo romance (que é lançado hoje, quinta-feira, 7, às 18 e 30, na Livraria Leya Barata, com apresentação de Mário de Carvalho), David Machado, 32 anos, não anda muito longe desta sabedoria popular, à qual poderíamos acrescentar outra: “Quem conta um conto acrescenta um ponto”. Destas incertezas se faz Deixem Falar as Pedras, uma história com muitas histórias dentro, uma verdade feita de muitas mentiras, um facto relatado através de muitas versões. Um dia, sem saber como, Nicolau Manuel é acusado de colaborar com os antifranquistas que se refugiaram em Trás-os-Montes depois da II Guerra Mundial. Por essa mentira, foi parar à prisão e perdeu o amor (e o casamento) da sua vida. Várias décadas depois, o seu neto quer repor a verdade, fixando num caderno as memórias que desse tempo lhe chegam. Entre a cidade e a aldeia (a Lagares imaginária que já conhecemos de O Fabuloso Teatro do Gigante, o seu primeiro romance), o passado e o presente, a dúvida e a certeza, David Machado, autor ainda de um volume de contos e três livros infantojuvenis, deixa nas mãos do leitor a escolha da versão que mais lhe convém. Ou da mentira que lhe parecer mais verdadeira.

JL: Quantas histórias cabem dentro de uma história? Esta parece ser uma das perguntas centrais deste romance. Concorda?
David Machado: Sim, uma história nunca tem apenas uma forma de ser contada. Temos a base e depois as muitas narrativas que podem ser criadas a partir dela. Eu queria falar sobre a verdade e como ela se multiplica na cabeça de cada pessoa e como raramente coincide com a realidade. Porque há tantas verdades quantas cabeças.

Daí a diferença, sublinhada no livro, entre o que aconteceu e o que se recorda?
É a angústia do narrador: nunca saberá o que aconteceu, apenas o que lhe contam. É esse jogo entre verdade, realidade e mentira que me permite trabalhar uma história e os seus diferentes pontos de vista. Porque o passado vai sendo criado à medida que o presente avança no futuro.

Esses vários tempos ditaram as duas personagens principais, o neto e o avô?
Este livro surgiu quando, depois de ter lido Guerrilheiros Antifranquistas em Trás-os-Montes, comentei com o meu avô um dos episódios descritos por Bento da Cruz, ao que ele contrapôs: “Isso não aconteceu assim, o meu pai estava lá e viu tudo”. O que mais me interessou não foi saber que versão estava certa, mas a possibilidade de as duas estarem igualmente corretas ou até o facto de nunca vir a saber qual delas é mais verdadeira. Aí encontrei o modelo para a história de um neto que faz uma espécie de defesa em tribunal do avô.

Em que sentido?
O avô foi acusado a vida toda de certos crimes e o neto tenta defendê-lo, contrariando cada uma das mentiras que foram contadas sobre ele. No entanto, à medida que denuncia a mentira acaba também por a destacar. E o leitor nunca ficará a saber o que realmente aconteceu. Sem ter a certeza absoluta, tem de escolher, por razões afetivas ou por instinto.
Como foi a experiência de escrever sobre um tempo (a ditadura salazarista) que os seus pais e avós viveram?
Tive de me documentar bastante. Mas como a história que o neto conta não é exatamente correta, senti-me mais livre, pois não tinha de ser rigoroso. Eu gosto de escrever porque isso me faz pensar e questionar sobre a vida, o homem e o meu lugar no mundo. Por isso, não quis escrever um livro sobre a ditadura em Portugal, mas relacionar esse tempo com a forma como as gerações contemporâneas vivem e veem essa época. Além disso, o universo dos antifranquistas em Trás-os-Montes é fascinante. Parecem aventuras de índios e cowboys no meio das serras portuguesas.

E no outro extremo, foi fácil encontrar a voz de um jovem de 14 anos?
Foi a parte mais difícil e a mais revista. O livro intercala a narração do neto com as histórias do avô e levei tempo a encontrar o tom adequado, realista e literário, já que ele usa muitas expressões de um adolescente ao mesmo tempo que tem pensamentos complexos sobre o que está à sua volta.

Ao contar a história, o neto risca algumas frases. Porquê?
Cada vez mais interessa-me usar a mancha do texto para transmitir ou reforçar sensações. E neste caso fazia todo o sentido riscar algumas frases, porque uma parte do livro é passada na ditadura, quando havia censura nos jornais e no quotidiano. Mas também tem a ver com a própria ideia de Literatura: escrever, reescrever, apagar. Quando um leitor abre um romance, desconhece o que foi apagado. Aqui sabe, pelo menos, a dimensão e o local do texto eliminado. De certeza que algumas pessoas vão tentar imaginar o que ele escreveu, outras apenas respeitar o seu silêncio. Em qualquer dos casos, gostava que se fortalecesse a relação entre leitor e personagem.

Entrevista (que já segue o novo Acordo Ortográfico) publicado no JL 1056, de 23 de Março de 2011.

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